Zóio fechou seus olhos e começou a contar...
Nos meus primeiros tempos de habitante da região metropolitana, viajar de trem era exótico. O cheiro das pastilhas de freio aromatizava a paisagem de favelas contrastando os condomínios fechados em meio ao pouco verde que ainda existe. Olhando pela janela adornada de um tipo de plástico como se fosse vidro tentava ler os escritos arranhados por diversas pessoas. Considerações do tipo “força jovem”, “se deus vier ao mundo que venha armado”, “sangue e coragem” ou puramente “Fe, te amo para sempre” me assustavam. Tentava entender, ou melhor, imaginar o contexto psicológico vândalo de quem infringiu tais inscrições num patrimônio “público”. Talvez o desejo de imortalizar aquela referida condição... Bem, não sei. E mesmo que visse alguém fazendo ficaria bem quieto. Mas de tudo, o que mais me chamava a atenção eram as cruzes. Ao longo de todo trajeto havia cruzes pretas invertidas pintadas nas paredes e pilares das pontes e viadutos. A princípio imaginei que fossem marcações da CPTM, mas logo descartei a hipótese. Que tipo de pessoa, seita ou sei lá o que dispensaria tanto tempo marcando cruzes negras invertidas ao longo da ferrovia? No satanismo a cruz invertida representa escárnio e rejeição a Jesus Cristo e o desprezo ao evangelho da salvação.
Às vezes via situações bem inusitadas. Pessoas e feições diversas. Vendedores ambulantes aos berros na defesa da qualidade de seus produtos, saltando vagões, fugindo dos fiscais. Sempre surgiam os pregadores de diversas igrejas de diversas crenças falando aos montes. Umas pessoas reagiam indiferentes, outras insatisfeitas demonstravam pensamentos nocivos. Uns perfumados, outros suados. Uns lendo ou dormindo, outros jogando. Todos num mesmo vagão em direção à estação Luz.
Sentou-se ao meu lado uma senhora. Eu simplesmente desejei boa tarde e me acomodei para lhe ceder espaço.
_ Olha moço, sabe que nunca ninguém me desejou boa tarde no trem?
_ Sério?
_ Sim, e faz muito tempo que freqüento esse trem. Sabe que você me lembra muito meu filho?
_ Fico feliz, espero que tenha apenas boas lembranças de seu filho – assenti suavemente sarcástico, duvidando da capacidade de entendimento da interlocutora, sem saber o que viria em seguida.
_ Sim, era um rapaz muito bom. Estudava, trabalhava, estava comprando um apartamento...
Permaneci olhando o filme que se passava ao fundo dos olhos daquela senhora de nenhuma vaidade, que se permitia estampar na própria aparência toda sua tragédia.
_ Mas meu filho faleceu – continuou -. Ele gostava de uma mulher que acabou com a vida dele. Depois que terminaram o casamento ele entrou numa tristeza profunda. Não podia mais ver meu filho daquela maneira. Tão bom rapaz, um filho maravilhoso, nunca nem alterou a voz para mim. Era um ótimo auxiliar de enfermagem, mas numa certa noite tomou uma dose fatal de medicamentos... Encontraram seu corpo numa área de serviço do hospital, o médico de plantão estava dormindo e quando acordou para fumar o viu.
_ Sinto pelo seu filho, mas ainda estamos muito distantes de entender o que faz uma pessoa perder o sentido de viver. Penso que se um dia soubermos isso poderá ser evitado. Você tem mais filhos?
_ Tenho uma filha, uma grande desgraça.
_ Como assim uma grande desgraça?!
_ Ela engravidou e tirou o resto que eu ainda possuía.
_ Mas como? Uma filha grávida não seria um motivo de felicidade?
_ Talvez sim se o pai da criança não fosse meu ex-marido. Ele assediava minha filha de apenas 14 anos, do segundo casamento, enquanto eu trabalhava. Esse meu terceiro ex-marido era mais jovem. Eles fugiram juntos. Minha dor foi tanta que não sei explicar. Logo depois tive um câncer, perdi meu útero e fiquei seca. Meu primeiro marido, pai do meu falecido filho era segurança de um banco e morreu assassinado. O pai da minha filha se foi enquanto ainda estava grávida. Isso seria um motivo para perder o sentido da vida, senhor?
Nesse momento um mal estar me causou enjôo, e um cheiro muito forte de enxofre se fez presente. Fechei meus olhos e levei a mão à cabeça... Foi quando uma pessoa se sentou abruptamente no lugar da senhora que não estava mais presente. Tive um choque, enquanto isso algumas pessoa resvalavam risos. Era como se ninguém estivesse ao meu lado enquanto eu, conversava sozinho. O novo ocupante se dirigiu a mim e perguntou em qual estação eu desceria...
_ Você viu a senhora que estava aqui agora? Você se sentou no lugar dela! – Perguntei.
_ Não posso ver, senhor, eu sou cego. Mas sim, eu senti uma pessoa aqui. Por favor, em qual estação vai descer?
_ Luz. Vou para a luz.
_ Pode me ajudar chegar à plataforma de Guaianazes?
_ Sim... Claro que posso. Você é cego desde que nasceu?
_ Nessa vida, sim. Na minha última encarnação eu presenciei um adultério que antecipou a minha morte. Foi quando decidi que se nascesse novamente não gostaria de enxergar.
_ Pelo amor de Deus. Eu só posso estar louco. Que papo é esse de encarnação, meu amigo?
_ É... Você deve estar dando muito trabalho aos espíritos. Mas tudo é uma questão de tempo, seria mais fácil aceitar sua missão. Chegamos, pode me ajudar?
Descemos do trem de braços dados, esperamos o tumulto diminuir para pegar a escada rolante. Nenhuma palavra a mais fora pronunciada. Quando olhei de volta ao trem, que já partia, vi novamente, dessa vez pela janela, o semblante mórbido e os olhos vítreos daquela senhora... O arrepio endurecera meu pescoço e meus ombros… Quando deixei o cego na plataforma, ele me agradeceu sem muitas palavras. Aguardei a certa distância sua partida com o auxílio de uma nova pessoa.
Não dava pra saber o que tinha se passado. Desisti imediatamente de pensar no assunto. Desconectei minhas idéias do princípio de entendimento racional. A verdade estava longe da minha capacidade em concebê-la. Eu vi e falei com um espírito ou toda aquela atmosfera hostil das pessoas do trem me gerou uma idealização que representasse a tragédia humana numa alucinação, na visualização da referida senhora?
Mas sendo assim, o que foi o cego me falando aquilo? Teria ele entendido meu contexto porque sua percepção de imaginar as coisas assim o permitiu? Ou estaria tudo ligado a uma força providencial?
Decididamente eu precisava rezar e procurar um médico. Essa ambígua pretensão iniciou-se tão logo cruzei a Praça da Sé, ao me sentir atraído a entrar na catedral. Misturada ao comércio informal, poluição, prostitutas, usuários de drogas, crianças degeneradas, pessoas normais e algumas freiras estava a porta do templo católico.
Diante das imagens e do altar as lembranças se faziam presentes. À mente vinham idéias do passado, da época que freqüentava as missas, de quando fui catequista e de quando era coroinha. Nostálgico e singelo era meu passado católico. Não lembrava mais a partir de que momento me afastei dos rituais. Independente de qualquer coisa, na época não me sentia mal em participar de missas cujos celebrantes de uma forma ou de outra estavam associados a algum escândalo. Entendia a limitação deles, enquanto homens. Tentava buscar valia pelas intenções. Lembrei-me de minha última confissão, na crisma, há muito tempo. Foi muito bom o papo, muito sensato, inclusive. Mas acho que desisti de ir por ser muito cansativo. Quando a oração do Pai Nosso era cantada eu queria morrer. Chegou num ponto que ir à missa era em si uma forma de penitência pelos meus pecados. Não suportava aquele tanto de gente hipócrita fingindo acreditar e entender tudo, abrindo a boca, fazendo barulho. Acho que comecei perceber que pecava mais indo à igreja que não indo.
Mas nesse dia eu estava numa concepção diferente. Meu Deus, eu tinha conversado com alguém que não existia! A qualquer que contasse isso ou iria rir ou querer me internar. E o cego? O que foi aquilo? Seria o caso de me confessar com um padre? Não pensando que necessariamente o padre seja capaz de absolver meus pecados, e sim como pessoa pela formação capacitada a lidar de forma mais própria com questões de ordem sobrenatural, dentro das convicções de minha formação católica, resolvi me dirigir ao confessionário.
Nos meus primeiros tempos de habitante da região metropolitana, viajar de trem era exótico. O cheiro das pastilhas de freio aromatizava a paisagem de favelas contrastando os condomínios fechados em meio ao pouco verde que ainda existe. Olhando pela janela adornada de um tipo de plástico como se fosse vidro tentava ler os escritos arranhados por diversas pessoas. Considerações do tipo “força jovem”, “se deus vier ao mundo que venha armado”, “sangue e coragem” ou puramente “Fe, te amo para sempre” me assustavam. Tentava entender, ou melhor, imaginar o contexto psicológico vândalo de quem infringiu tais inscrições num patrimônio “público”. Talvez o desejo de imortalizar aquela referida condição... Bem, não sei. E mesmo que visse alguém fazendo ficaria bem quieto. Mas de tudo, o que mais me chamava a atenção eram as cruzes. Ao longo de todo trajeto havia cruzes pretas invertidas pintadas nas paredes e pilares das pontes e viadutos. A princípio imaginei que fossem marcações da CPTM, mas logo descartei a hipótese. Que tipo de pessoa, seita ou sei lá o que dispensaria tanto tempo marcando cruzes negras invertidas ao longo da ferrovia? No satanismo a cruz invertida representa escárnio e rejeição a Jesus Cristo e o desprezo ao evangelho da salvação.
Às vezes via situações bem inusitadas. Pessoas e feições diversas. Vendedores ambulantes aos berros na defesa da qualidade de seus produtos, saltando vagões, fugindo dos fiscais. Sempre surgiam os pregadores de diversas igrejas de diversas crenças falando aos montes. Umas pessoas reagiam indiferentes, outras insatisfeitas demonstravam pensamentos nocivos. Uns perfumados, outros suados. Uns lendo ou dormindo, outros jogando. Todos num mesmo vagão em direção à estação Luz.
Sentou-se ao meu lado uma senhora. Eu simplesmente desejei boa tarde e me acomodei para lhe ceder espaço.
_ Olha moço, sabe que nunca ninguém me desejou boa tarde no trem?
_ Sério?
_ Sim, e faz muito tempo que freqüento esse trem. Sabe que você me lembra muito meu filho?
_ Fico feliz, espero que tenha apenas boas lembranças de seu filho – assenti suavemente sarcástico, duvidando da capacidade de entendimento da interlocutora, sem saber o que viria em seguida.
_ Sim, era um rapaz muito bom. Estudava, trabalhava, estava comprando um apartamento...
Permaneci olhando o filme que se passava ao fundo dos olhos daquela senhora de nenhuma vaidade, que se permitia estampar na própria aparência toda sua tragédia.
_ Mas meu filho faleceu – continuou -. Ele gostava de uma mulher que acabou com a vida dele. Depois que terminaram o casamento ele entrou numa tristeza profunda. Não podia mais ver meu filho daquela maneira. Tão bom rapaz, um filho maravilhoso, nunca nem alterou a voz para mim. Era um ótimo auxiliar de enfermagem, mas numa certa noite tomou uma dose fatal de medicamentos... Encontraram seu corpo numa área de serviço do hospital, o médico de plantão estava dormindo e quando acordou para fumar o viu.
_ Sinto pelo seu filho, mas ainda estamos muito distantes de entender o que faz uma pessoa perder o sentido de viver. Penso que se um dia soubermos isso poderá ser evitado. Você tem mais filhos?
_ Tenho uma filha, uma grande desgraça.
_ Como assim uma grande desgraça?!
_ Ela engravidou e tirou o resto que eu ainda possuía.
_ Mas como? Uma filha grávida não seria um motivo de felicidade?
_ Talvez sim se o pai da criança não fosse meu ex-marido. Ele assediava minha filha de apenas 14 anos, do segundo casamento, enquanto eu trabalhava. Esse meu terceiro ex-marido era mais jovem. Eles fugiram juntos. Minha dor foi tanta que não sei explicar. Logo depois tive um câncer, perdi meu útero e fiquei seca. Meu primeiro marido, pai do meu falecido filho era segurança de um banco e morreu assassinado. O pai da minha filha se foi enquanto ainda estava grávida. Isso seria um motivo para perder o sentido da vida, senhor?
Nesse momento um mal estar me causou enjôo, e um cheiro muito forte de enxofre se fez presente. Fechei meus olhos e levei a mão à cabeça... Foi quando uma pessoa se sentou abruptamente no lugar da senhora que não estava mais presente. Tive um choque, enquanto isso algumas pessoa resvalavam risos. Era como se ninguém estivesse ao meu lado enquanto eu, conversava sozinho. O novo ocupante se dirigiu a mim e perguntou em qual estação eu desceria...
_ Você viu a senhora que estava aqui agora? Você se sentou no lugar dela! – Perguntei.
_ Não posso ver, senhor, eu sou cego. Mas sim, eu senti uma pessoa aqui. Por favor, em qual estação vai descer?
_ Luz. Vou para a luz.
_ Pode me ajudar chegar à plataforma de Guaianazes?
_ Sim... Claro que posso. Você é cego desde que nasceu?
_ Nessa vida, sim. Na minha última encarnação eu presenciei um adultério que antecipou a minha morte. Foi quando decidi que se nascesse novamente não gostaria de enxergar.
_ Pelo amor de Deus. Eu só posso estar louco. Que papo é esse de encarnação, meu amigo?
_ É... Você deve estar dando muito trabalho aos espíritos. Mas tudo é uma questão de tempo, seria mais fácil aceitar sua missão. Chegamos, pode me ajudar?
Descemos do trem de braços dados, esperamos o tumulto diminuir para pegar a escada rolante. Nenhuma palavra a mais fora pronunciada. Quando olhei de volta ao trem, que já partia, vi novamente, dessa vez pela janela, o semblante mórbido e os olhos vítreos daquela senhora... O arrepio endurecera meu pescoço e meus ombros… Quando deixei o cego na plataforma, ele me agradeceu sem muitas palavras. Aguardei a certa distância sua partida com o auxílio de uma nova pessoa.
Não dava pra saber o que tinha se passado. Desisti imediatamente de pensar no assunto. Desconectei minhas idéias do princípio de entendimento racional. A verdade estava longe da minha capacidade em concebê-la. Eu vi e falei com um espírito ou toda aquela atmosfera hostil das pessoas do trem me gerou uma idealização que representasse a tragédia humana numa alucinação, na visualização da referida senhora?
Mas sendo assim, o que foi o cego me falando aquilo? Teria ele entendido meu contexto porque sua percepção de imaginar as coisas assim o permitiu? Ou estaria tudo ligado a uma força providencial?
Decididamente eu precisava rezar e procurar um médico. Essa ambígua pretensão iniciou-se tão logo cruzei a Praça da Sé, ao me sentir atraído a entrar na catedral. Misturada ao comércio informal, poluição, prostitutas, usuários de drogas, crianças degeneradas, pessoas normais e algumas freiras estava a porta do templo católico.
Diante das imagens e do altar as lembranças se faziam presentes. À mente vinham idéias do passado, da época que freqüentava as missas, de quando fui catequista e de quando era coroinha. Nostálgico e singelo era meu passado católico. Não lembrava mais a partir de que momento me afastei dos rituais. Independente de qualquer coisa, na época não me sentia mal em participar de missas cujos celebrantes de uma forma ou de outra estavam associados a algum escândalo. Entendia a limitação deles, enquanto homens. Tentava buscar valia pelas intenções. Lembrei-me de minha última confissão, na crisma, há muito tempo. Foi muito bom o papo, muito sensato, inclusive. Mas acho que desisti de ir por ser muito cansativo. Quando a oração do Pai Nosso era cantada eu queria morrer. Chegou num ponto que ir à missa era em si uma forma de penitência pelos meus pecados. Não suportava aquele tanto de gente hipócrita fingindo acreditar e entender tudo, abrindo a boca, fazendo barulho. Acho que comecei perceber que pecava mais indo à igreja que não indo.
Mas nesse dia eu estava numa concepção diferente. Meu Deus, eu tinha conversado com alguém que não existia! A qualquer que contasse isso ou iria rir ou querer me internar. E o cego? O que foi aquilo? Seria o caso de me confessar com um padre? Não pensando que necessariamente o padre seja capaz de absolver meus pecados, e sim como pessoa pela formação capacitada a lidar de forma mais própria com questões de ordem sobrenatural, dentro das convicções de minha formação católica, resolvi me dirigir ao confessionário.