quarta-feira, 23 de junho de 2010

Momento Junguiano

Após extensa e gratificante leitura das mais de 550 páginas do tratado Tipos Psicológicos de C. G. Jung, me permito a audácia de um rápido ensaio sobre aquilo que assimilei.


Primeiramente, partimos da tese de que antes e acima de qualquer método, existe o olhar subliminar de intencionalidade do próprio observador, que então dirige os resultados de sua percepção ao que for compatível com sua própria realidade de mundo.


Mundo é, conceitualmente, o somatório de tudo, seja substantivo ou abstrato. Para cada pessoa existe o mundo, e com palavras expressamos o sentimento acerca desse mundo. Entretanto, o mundo, que parece existir por si, acaba se resumindo ao significado de cada palavra usada para expressá-lo diante da visão que cada pessoa tem ao se propor tentar ou ter de enxergá-lo. Esses seriam os chamados “jogos de linguagem”, em que a semântica das palavras se encontra em seu uso.


Se pudéssemos perguntar diretamente ao mundo se ele é de fato ou simplesmente se acha o mundo, poderíamos nos surpreender com o fato de que ele não se acha nem é o mundo imaginado por ele e, ao seu próprio olhar, o verdadeiro mundo é bem maior do que aquilo que em nossa limitação consideramos como mundo todo.


Aos olhos de uma bactéria, caso os possuísse, seu mundo seria visto a partir de sua própria e única célula primitiva, embora obviamente ela tivesse e percebesse diversos modos de interação com organismos superiores e bem mais complexos, sua consciência disso, embora existisse, não passaria então de superficial, se comparada à visão que temos da altura onde nos encontramos.


Ao mesmo tempo, nós - referidos pertencentes aos seres superiores e complexos -, na ausência de microscópios, igualmente não poderíamos enxergar objetivamente a existência nem de bactérias nem de nossas próprias células, muito menos o esboço da arquitetura do universo sem os telescópios.


Todavia, podemos enxergar nossa imagem primitiva sem espelhos, apenas fechando os olhos, ou seja, imaginando... Igualmente, na ausência daqueles instrumentos, como fora durante muito tempo, as pessoas eram capazes de supor sustentavelmente a existência de tais estruturas micro e macroscópicas devido a percepção de mecanismos autônomos de interação e funcionamento com o próprio organismo.


Igualmente, ao penetrarmos qualquer mundo psicológico alheio ao nosso suposto e profundo entendimento, inclusive sobre campos desconhecidos de nosso próprio corpo e existência, confrontamos tais mundos da forma como eles se nos apresentam - o que em outras leituras seria algo de natureza mais filosófica clínica, atuante de maneira ímpar na busca da interioridade e individualidade.


Dessa maneira, o “cisco no olho do irmão”, como Jung descreveu, pode vir a incomodar mais que se fosse no seu; daí uma maneira de justificar não dever haver preconceitos sobre qualquer “cisco” ser incômodo ou não. Isso, citando Clarice Lispector, seria, por exemplo, o fato de que devemos ter cuidado ao mexer os defeitos porque não sabemos sobre quais estamos edificados. Os “ciscos” são defeitos que podem, pela suas funcionalidades ou dependendo do ponto de vista, não serem defeitos.


Nesse raciocínio, fica claro (a mim) que Jung, em suas observações, tenha constatado fundamentalmente que, em tese, cada pessoa é um mundo e, para qualquer que seja a pessoa, sua epistemologia, isto é, suas formas de conhecimento e compreensão das coisas, se baseiam no que se apresenta interna ou externamente ao universo psicológico a partir do qual ela se reconhece como ser.


Entretanto, interno (tipologia introvertida) ou externo (tipologia extrovertida) são só questões de referencial, que dependem, pois, daquele referido olhar do observador - o que numa matemática simbólica, ao utilizar o conceito de inverso (“número pelo qual se multiplica outro número e o resultado é 1”), os tornam a mesma coisa. Ou seja, introversão e extroversão são modalidades que se complementam e integram o todo e a unicidade dos mundos individuais. O universo psicológico se equilibra ou desequilibra pelos tipos de relações dos seus inversos – que nunca devem ser interpretados como opostos, isto é, entidades que se anulam -. É interessante ilustrar que “ser humano” não é só designação substantiva ou meramente predicativa do sujeito, mas sim que semanticamente também inclui o “ser” como verbo no infinitivo, do qual se deve subentender um propósito e uma proposta.


Para C. G. Jung, a psicologia têm como referenciais de estudo a emoção, a intuição, a razão e o pensamento. Cada um desses “pilares” tende a uma inclinação natural de maior foco em relação ao interior ou exterior do objeto. Este objeto entendo ser a consciência que se coloca à frente do véu do inconsciente.


Nesse caminho, numa mesma pessoa, cada uma daquelas “estruturas psicológicas” podem tender mais ao interior abstrato do processo de consciência ou ao objeto externo ao lugar onde se processa a consciência daquilo que se encontra fora de si. O somatório virtual dessas tendências viria a caracterizar o tipo introvertido ou o tipo extrovertido, respectivamente.


Sendo assim, se torna impossível acessar a integralidade da psicologia individual porque, neste âmbito, as possíveis correlações cognitivas e suas imagens são infinitas, inclusive porque não necessariamente uma pessoa pode deter os quatro pilares em sua estrutura de pensamento. Igualmente, o jeito como cada um acessa, descreve e vive seu mundo individual, se torna absolutamente limitado à subjetividade da linguagem utilizada ao processá-lo.


Supomos que um cético não intui, e seja absolutamente materialista, caracterizando um tipo extrovertido. Mas no seu interior, a verdade pode ser que sua intuição é tão forte que sua maior intuição é não intuir sobre nada, o que o torna absolutamente introvertido.


Uma pessoa fria, apática, finaliza seu perfil como não emotivo. Mas sua dor por emoções vividas, que permanecem vívidas em seu consciente e inconsciente a torna mais emotiva que a pessoa que extravasa mais evidentemente suas emoções.


De uma pessoa que age aparentemente sem muita reflexão, não medindo as consequências de seus atos, poderíamos dizer que não pensa antes de fazer as coisas. Entretanto, ela pode ser adepta da filosofia pragmatista, cujo avançado processo de pensamento indica uma resolução mais funcional dos problemas, e o erro seu maior aprendizado.


Pessoas que agem de maneiras adversas àquelas que mantém uma “boa relação” com seu meio social acabam por nunca terem razão, e perderem energicamente para a opinião da maioria. Mas se houvesse uma compatibilidade de valores com os mundos particulares de seus semelhantes, elas teriam razão perante os olhos alheios.


Normalmente, as pessoas são inclinadas a sacrificar certas tendências naturais de sua personalidade para acessar as chaves dos portais de “mecanismos compensatórios” pela finalidade de adaptação a circunstâncias supostamente mais importantes à sua própria essência. Mas o fato é que, às vezes, por certos propósitos, as pessoas sacrificam o que lhes eram mais ou menos importantes e trapassam o próprio destino. Para mim, a partir desse raciocínio, ficam caracterizadas as decepções, que movimentam todas doenças emocionais e cataclismos sociais ao longo dos tempos.


Enfim, tudo depende do referencial, mas fica claro que tudo que existe, ou seja, o universo, descende da dualidade dos inversos de sua constituição substantiva e/ou abstrata. Um fio de cabelo na cabeça é pouco, mas num prato de sopa é muito.


Considerando então as linguagens diferentes, as condições adversas de tempo e meio vividos pelos povos, bem como a moral, os costumes e enfim, a totalidade da coerção social prévia à vida dos novos indivíduos e demais características gerais da suas situações, são estabelecidos padrões gerais que passam a serem chamados arquétipos, e a movimentação dinâmica “virtual” que sugere tais tendências, o inconsciente coletivo.


Surgem assim os símbolos, que nos remetem às equações de denominador comum com os demais semelhantes, e expressam numa linguagem comum e atemporal os significados intrínsecos à essência existencial do ser humano.


Nessa instância, fica óbvio o porquê de C. G. Jung também abrir espaço para Deus nessas mesmas equações, pois se trata de um símbolo universal que se encontra plantado em nossos corações desde quando nos damos conta de sermos seres dotados de consciência.


Talvez a raiz da problemática do divino esteja numa correlação equívoca da busca sensual dessa experiência, enquanto não nos damos conta de que ela reside apenas no pensamento, o que por si já a torna verdadeira.


Entendo finalmente que a evolução filosófica e espiritual, adornada de caminhos iniciáticos, ou seja, vias de autoconhecimento, num processo de individuação, como diria Jung, deva começar com choques de realidade e desconstrução de antigos laços para abertura de novas experiências.


Mais que a pretensão de expressar em menos de 3 páginas tão vasta obra sobre a psicologia das profundezas, espero que alguém que talvez leia este ensaio considere minha boa intenção e sinta-se convidada a mergulhar no mundo de Carl. G. Jung. É um bom caminho.


Por Fabrício Manoel Oliveira

Finalizado em 23/06/2010