terça-feira, 4 de maio de 2010

6 Capítulos, 6 Portais, 7 Chaves

Por Fabrício Manoel Oliveira
07˚C

Às vezes a representação dos fatos revela uma falta conformidade lógica quanto às relações de causa e efeito esperadas acerca de uma dada situação.
Tal circunstância, neste caso que nos propomos comentar, refere-se às pessoas de boa vontade e boa fé que raramente obtêm reciprocidade ao nível das suas supostas boas ações (conforme se espera de modo intrínseco ao aparente nada esperar). Idéias do tipo “toda ajuda é uma autoajuda”, “fazer o bem sem saber a quem”, “fazer sem esperar nada em troca”, ou simplesmente um “deus te pague” são difíceis de aceitar e de serem usadas como sustento dessa suposta boa vontade que norteia as reflexões e ações de pessoas supostamente boas.

Parecem-me que as decepções, independentes dos juízos sobre suas origens “diretas”, aos poucos sigam minando as boas vontades daqueles que ainda as conservam.

O conflito desordena, pois, sobre a existência ou não de uma acepção de natureza superior que resguarde certo benefício de no “bem” permanecer em contraponto à probabilidade de deixar de vivenciar essa “benevolência abstrata” rumo à imersão sensorial egocêntrica, pseudoaltruísta, à deriva dos instintos, desejos e interesses, dando aceitação a si e aos fatos sem maiores considerações… Como perenes “inocentes” gaiatos levados a bordo do navio sem destino.

O quanto se usa dessas dúvidas, geradas por tal conflito, como maneira de enxergar um argumento determinante para desistir das boas ações (posto que agir destarte não traria nada além de decepção), pode conceber a “opção de vida” de desistir de ter fé nas boas obras (entendendo fé não como certeza, e sim como ausência de dúvidas quanto à funcionalidade daquilo que se crê).

Todavia, num arquétipo mais abrangente, ao nível de “inconsciente coletivo programado”, pensar de tal modo, isto é, desistir da funcionalidade da boa fé, permanece implícito na omissão “cotidianista” daqueles que caminham bitolados rumo à “saúde” de estarem ajustados ao sistema hostil e doente, mecanicista, que, de um jeito ou outro, imprime individualismo e competitividade como pilares sobre os quais se edificam o “eu” social. Há, sem dúvidas, algo que infringe nos comportarmos como se fôssemos apenas peças numa linha de produção, tanto descartáveis quanto substituíveis, anônimas, designadas por números e valorizadas pelos códigos de barras estampados no que parecemos ser.

Essas etiquetas, a partir das quais se aferem as “sistólicas” e “diastólicas” que pulsam as funções exercidas no social não excluem ninguém, nem mesmo os catedráticos (teoricamente expoentes do saber científico), que obtêm seus títulos sabendo quase tudo sobre tão pouco (comparado ao todo), sendo mais pressão que expressão. Vale lembrar que são eles que nos ensinam (sendo ensinar a demonstração de possibilidades do saber a partir de métodos); ou, no mínimo, que chefiam as primeiras instâncias do treinamento de adequação ao sistema (dita educação). À esta “educação” conecta-se a mídia que sugere tendências, seleciona informações e nos abstrai por “induções hiponóticas” pelos jogos de imagens e linguagens psicodélicas.

Enquanto estivermos bem parafusados na grande máquina, seremos úteis (ou não). Parafusos desparafusados, frouxos ou espanados não servem mais e ponto. Havendo uma boa assitência técnica, talvez ainda duremos mais um tempo… E mais ou menos assim estamos para o sistema assim como a sistemática da vida está para nós.

Mas isso então é vida? Ou melhor: isso se presta à vida? Será que não estamos gastando tempo demais nos torneando como roscas de diâmetros ideais (ou idealistas), buscando supostas boas ancoragens nos buracos das grandes rodas que supostamente fazem nosso mundo minimalista girar?

Seria nossa sociedade uma versão demonstrativa experimental em colapso do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley? Ou quem sabe uma “Era de Aquário” afogando quem não sabe nadar no dilúvio da imoralidade?

Refletir sobre a significação mais profunda das intercessões dos homens entre si e com o meio pode ser um passo não necessariamente rumo à “resposta”, mas talvez a pelo menos uma das respostas (sobre haver ou não um suposto “porquê maior”). De que nos adianta toda evolução científica que acolhe quem pode pagar enquanto segrega quem não? Seria possível aplicar o transhumanismo, evoluindo para um mundo de paz e prosperidade amparado pela tecnologia? Mas pensemos se essa teoria de ótimas intenções (semelhante a uma espécie de socialismo cibernético) se transformasse numa forma de neonazismo, totalitarismo ou sei lá mais o que, onde as nações superiores destruam as inferiores com suas bombas atômicas e de antimatéria, para apenas os “escolhidos” viverem a plenitude do planeta terra.

Será que estamos preparados para analisar precisamente e com responsabilidade os potenciais riscos e benefícios de qualquer coisa que se creia, e o que se cria em si e no meio como obra dessa crença?

As pessoas são ou não confiáveis? Somos bons por natureza e o meio pode nos corromper ou nossa natureza é fundamentalmente brutal e precisamos ser suprimidos às regras de “normatização” da ordem para o progresso da humanidade?

Como arquitetar harmonicamente o que se quer dentro da suposta intencionalidade que define a forma essencial dos processos mentais?

Como decidir se devemos ou não ter o que se quer?

Qual o impacto da emoção ou da razão diante das antíteses e dos paradoxos comportamentais nos processos de causação mental?
Como controlar os desejos? Mas se controlados, qual a graça de sentir se não da maneira mais intensa possível que os corpos físico e abstrato podem nos conceder?

Como arbitrar o poder sobre o querer e o dever?

Como interpretar a linguagem do corpo (referindo às linguagens inconscientes)?

Estamos nos adaptando aos padrões respeitando ou não os limites de quê? Será que sabemos buscar formas de conhecimento para cuidar de si mesmo, ou, no mínimo, boas orientações? Tantas receitas, fórmulas mágicas, medicamentos, dietas, exercícios físicos, técnicas de relaxamento, meditação… Qual medida respeita nossos limites?

Qual seria a conduta ideal para uma vivência digna na genuidade da natureza humana? Aquela ditada por algum deus de alguma religião, mesmo havendo um tipo de deus para cada tipo do que se entende como religião? Ou aquela definida pela ciência que se sobrepõe à inteligência de um possível verdadeiro deus?

São de questões de derreter o cérebro. É como um “milk-shake” de café descafeinado tão doce de edulcorantes (para não engordar) que chega a dar diarréia, nos deixando capengas e numa ansiedade tremenda de cagar… Mas será que já existe o verbo cagar, tão útil, expressivo e constrangedor...? Voltando à diarréia (termo técnico reconhecido), ela é uma forma de purificação, pois a embalagem linda da fórmula norte-americana sofre uma catarse ao longo do sistema digestório… E ao mesmo tempo, após o passeio pelo “fast-food” o casalzinho (macho/macho; macho/fêmea; fêmea/fêmea ou bizarrices) vai mentalizando a “fast-foda”, lubrificando as engrenagens do desejo sexual incluindo coitos pela mesma via de excreção da diarréia… Mas isso pode ser normal, mas talvez perversão (perversa e pervertida)… O pior é que insistimos em colocar acento no cu.

Será que todo esse caos já não é a genuína nada genial natureza humana?

Peço gentilmente que a observação dessas declarações se dê pelas perspectivas em que eu as tenho, e de maneira nenhuma sugerem qualquer tipo de proposta de “revolução cultural” ou “insurreição anarquista”; nem muito menos de qualquer tipo de intolerância ou violência contra o ser humano em qualquer condição em que se encontre (ou é encontrado, ou vai de encontro, ou ao encontro de…). Não sou ninguém à altura sequer de sugerir qualquer jeito “melhor” de ser… Não sou nem mesmo um filósofo (formado em Filosofia em alguma instituição de “Ensino Superior” reconhecida pelo MEC). Pior: sou apenas um cirurgião-dentista bem intencionado (que, segundo alguns, se acha melhor que os outros), tentando entender tão pequeno quanto sou (mesmo sabendo que em uns dois ou três aspectos estou além, sem humildade). Todos esses questionamentos sinceros e os que vierem são apenas reformulações de questões já questionadas. E que fique bem claro meu respeito por todos, mas protesto veementemente o senso de responsabilidade dos valores e exemplos que nos são repassados, assumidos ou não.

Como aprender ter serenidade para aceitar as coisas que não podemos modificar?

Como ter coragem para modificar aquelas que podemos e sabedoria para distinguir umas das outras?

Qual pressuposto é digno de ser um pressuposto digno de algo que permita uma resposta robusta a qualquer julgamento?

Há maior decepção que não saber as respostas? Há maior decepção que as decepções geradas pelas respostas dogmáticas diluídas nas expectativas?

Considerando como suficiente o postulado de que “nada se cria, tudo se transforma”, há por obrigatoriadade lógica a existência de criadores, criaturas, coisas inanimadas criadas ou adaptadas, processos de criação do processo de criação, processamentos operacionais da produção, reprodução… E assim vai. Criam e recriam idéias de coisas para a vida e até a própria vida. Cada realidade suposta passa então a ser uma realidade vívida de uma forte imaginação. A este bordo, não poderíamos validar como criador o processo de criação em si, e não necessariamente questionar a existência de algum arquiteto que preceda tal processo de criação?

Por hora, perceber a vida mostra quanto do tanto ninguém sabe, e quanto se supõe do quanto não se faz saber. Logo, não saber nos faz supor, o que de um jeito ou de outro, supostamente gera a forma de expressar o que supostamente se compreende. Essa menção pode ser confirmada refletindo sobre as distintas maneiras como as pessoas se revelam, estando por trás dessas revalações as maneiras como sentem o mundo, numa equação diretamente proporcional ao que aprenderam supor sobre ele, gerando paradigmas com maior ou menor grau aceitação por partilhantes conceituais das propostas de tais paradigmas.

Prossigo, assim, supondo que as suposições sejam apenas sombras de cujos corpos pouco se pode imaginar quanto à coisa em si, mas que se toma como suficiente na determinação da natureza individual dos pensamentos e desejos (pelo menos no momento anterior à experiência que permitir opinião própria acerca da forma que fora anteriormente suposta, transcendendo subjetivamente ao status de compreensão, obviamente a caráter empírico).

Pensando as vivências pelos modos que auxiliam nos situarmos existencialmente, diria que o homem pode ser localizado historicamente pelo fato de que a experiência de uma pessoa se dá em determinado tempo e espaço histórico. A forma de perceber essa coerção externa a que se está atrelado personifica a identidade de qualquer pessoa que por sua vez relata tal estrutura de pensamento da forma como o mundo lhe parece, como um fenômeno singular. As pessoas se referem ao mundo como se o conhecessem da forma como dizem conhecer, e os “jogos de linguagem” nessa analítica verbal se nos revelam que o sentido da palavra está em seu uso.

Diante dessas considerações do parágrafo anterior, que reúnem fundamentos filosóficos de Dilthey, Husserl, Jonh Locke, Berkeley e Wittegenstein numa intertextualidade inspirada por Lúcio Packter e Mônica Aiub pela “Filosofia Clínica”, acrescento a idéia de Protágoras de que “o homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que não são enquanto não são”.

Tomando a liberdade de sair um pouco dos métodos, suponho propriedade em considerar que talvez uma pessoa seja para si a medida mais exata pelo que não foi do que por aquilo que pensa ser (tendo como própria medida a vontade e o desejo que medeiam cada representação particular de mundo), e diante disso, a viabilidade de se perceber que cada instante pode ser um recomeço; e que o futuro abraça quem o alcança na mesma intensidade do significado de sua busca (ou não).

Suponho que ter consciência de si e um pouco de indiferença com o que se faz parecer, permite exprimir também a si uma espécie de cura interior, mas isso não dá a ninguém o direito de ser como quiser sem lembrar que pode vir a responder por isso.

Seria oportuna a suposição de acreditar em algo superior às próprias pulsões (no sentido de vontades egoístas) no propósito de discipliná-las, ou seja, utilizar-se de racionalidade e espiritualidade na instituição de valores que além de respeitarem o senso comum, exercitem saciar-se pelo bem sem requerer reciprocidade.

Numa decepção, por exemplo, não seria o verdadeiro problema a própria idéia equivocada acerca de um objeto ou pessoa?

Será que uma decepção não consiste em nada além de falha conceitual, falha porque obtém referência apenas em si?

E obtendo referência apenas em si, será que não há um pré-juízo acerca da perfeição dos pré-conceitos e da incorruptibilidade dessa perfeição? Será que o sofrimento não deriva disso?

Até que ponto convém ou não assimilar a idéia do sofrimento como incentivo ao consumo daquilo que não faz sofrer? Por que surgem os vícios? Seria pela falta de vaidade, falta amor próprio ou simplesmente pela tentativa de recriar artificialmente uma condição que lhe seja agradável, sem dor? E quanto aos que supostamente não possuem vícios… Não seria viciada a vaidade de sustentar a inexistência de qualquer vício?

O que é a dor psicológica? Seriam os mesmos mecanismos da dor somática?

Seria sofrer uma expiação autoinfringida consciente ou inconscientemente figurada como aprendizado?

Mas se assim for, não seria a própria pessoa quem se castiga através de mecanismos tais e quais como se fossem um preço a se pagar por algo que gera culpa?

Por outro lado, será que existem entidades paralelas que nos fazem sofrer?

Mas se existem, por que estariam ali, só para nos fazer sofrer?

E nós, marionetes?

Não seria mais sensato entender o sofrimento apenas como alerta, e seu fim como saúde? Não seria o sofrimento uma linguagem não só do corpo, mas sim do corpo e da alma, bem como todas demais emoções?

A questão é tão vasta que, mesmo nas ciências médicas, aprendemos na fisiologia que a dor é subjetiva, mas calculamos doses efetivas de medicação proporcinalmente ao peso da pessoa, prevendo efeitos desejados conforme ocorrido em ratos e colaterais pelos relatos, numa toxicidade que varia de pessoa para pessoa e nunca se sabe ao certo, até chegar numa hemodiálise ou uma hepatite medicamentosa... Mas as pessoas não são simplesmente máquinas.

Manter-se estático, dualmente cogestionado nos campos físico e energético de nossa constituição biológica, diante do dinamismo do suposto tempo, é negar que viver tem um sentido, e que esse sentido apreende um caminho em que todos estão inseridos, de mãos dadas ou não. A consciência da verdadeira Natureza Superior que nos torna especiais e a vontade de remodelar situações de tristeza, consequentemente remodelando o grau de representatividade reduzido apenas às percepções ditas “racionais”, consistem, num todo, em pelo menos duas das formas possíveis ao autoconhecimento. Como julgar irracional tudo que é “secretado” das mesmas fontes que instituem critérios supostos racionais? Mas como não confundir as coisas?

Pela finalidade de sair de uma depressão emocional (desde que ela não esteja necessária, por mais paradoxal que isso pareça aos olhos de quem nunca esteve verdadeiramente deprimido), rumo à reprogramação que lhe conceda caráter provisório, isto é, limitado ao momento da experiência causadora, seria viável considerar que estar deprimido pode ser uma questão de opção, desde que se opte ou não por recriar novas formas de sentir a vida a partir do ciclo de novas experiências, ou seja, das novas maneiras de perceber o mundo através de uma originalidade compatível com o bem-estar do momento que se vive, não do que já se passou ou está longe de vir.

Talvez o caminho “certo” da vida seja como o da inteligência de um rio, ao nascer das águas que sobem por capilaridade pelas rochas, cursando desde os lençóis e se ramificando até desembocar na imensidão que abrange a porção infinita da essência do próprio rio. Os traços esboçados por onde passa esclarecem suas funções e finalidades, numa totalidade que ressoa por si. Assim, o silêncio se faz sombra no crepúsculo das questões acerca do sentido da vida; e a cada nova pergunta, novas suposições, conjecturas.

O curso natural do autoconhecimento também aparece sinuoso e perigoso em função das meias-verdades que contrastam os pré-juízos com as novas vivências, daí então as infinitas variáveis cujas determinantes geram momentos de bem-estar ou de sofrimento (ou simplesmente de decepção sem o componente somático da dor). É uma lógica simplista e incompleta, uma aventura, mas é a minha lógica sobre esse assunto. Considerando ainda que o juízo seja o ato pelo qual a inteligência nega ou afirma a identidade representativa de dois conceitos, ratifico ser aquela a minha lógica sobre tal assunto, aplicável ou não à aceitação alheia, óbvio.

Conhecer a si requer saber reconhecer o próximo. Ter serenidade para mensurar e respeitar as particularidades, sinceridade ao dizer sim ou não por qualquer desígnio e lembrar que a única verdade comum a todos é aquela que habita as células e anima o coração, é ser humano. Não há medicina para alma, não há sacerdócio através da carne. Pode não existir saúde, como pode não existir doença alguma. Nossa sorte está simplesmente no fato de sermos criaturas, senhores de nós mesmos e às vezes escravos de nossa liberdade. Não há o melhor nem o pior, há o ser humano, na sua capacidade de constituir relacionamentos autênticos. Tem quem se gosta, tem quem não. Tem gente que gosta da gente, tem gente que não. Há o que é mal educado porque diz o que não se quer ouvir (e a esses a melhor resposta é o silêncio), há o simpático por natureza, mas há também os que o fazem por oportunidade ou conveniência. Enfim, as pessoas não precisam ser de um jeito ou de outro, elas simplesmente podem ser como são (ou não).

Para alguns, o “amor” pode curar qualquer decepção porque permite interagir com emoções similares de outras pessoas, e nessa identificação recíproca pode haver uma bela intercessão: a amizade. Amigo é aquele que o deixa ser como é, sem deixar esquecer o que “nunca” se deve ser. Amigo é aquele que mesmo distante, mesmo no silêncio de às vezes ser substituído por um outro alguém que requer um espaço maior na sua vida, continua ali, como sempre esteve, sendo seu amigo. O amigo cega quando precisa cegar, se faz surdo ou mudo quando assim o solicita, mas nunca deixa de dar aquele abraço que às vezes faz chorar. O amigo não necessariamente entende, simplesmente respeita. O amigo ajuda parar a dor. Não há exemplo maior de evolução do que ser e ter amigos, mesmo que a amizades acabem.

As pessoas estão vivas tão somente pelas intenções e ideações. A ação determina apenas um dos possíveis resultados, não sendo, portanto, absoluta. Assim, errar é humano; perdoar, mais que humano.

Uma funcional reconfiguração pessoal deve se apoiar em sentimentos sublimes provocados pela composição da natureza e especialmente da arte, que se internalizam subjetivos e independentes, acrescidos de uma nova estética de significação existencial quando da abertura aos aspectos ocultos intrínsecos à cortina da realidade sensorial.

Dessa maneira, meu corpo funciona apenas como uma âncora enquanto meus pensamentos flutuam nas águas complexas das perguntas que anseiam tentar se me revelar. O entendimento das forças ocultas não se dá pelo acaso: requer crer no poder construtivo de bons diálogos, humildade para com as limitações e perseverança nas adversidades do caminho.

Suponho que no princípio o que havia era o Verbo, que por ele tudo se fez, mas também se desfaz. O Verbo fundamental é um sopro de luz, uma onda, um som… Podemos semear boas ou más palavras, que podem ferir ou curar profundamente, e somente a mente de quem sente sabe. Ser bem intencionado nas palavras não resolve o mundo. Pior, é desastroso, constrangedor para quem ouve ou para quem é ignorado ao dizer, até que se descobre o que realmente é bom e que as coisas não são o que parecem, e que o silêncio é mais que suficiente, é uma arma que desarma.

Pense se um cego não acreditasse que o mundo existe só porque não pode enxergar... Filosofia e Arte revelam tentativas de entender e exteriorizar o metafísico de forma equivalente àquela que sustenta a imaginação de um cego na tentativa de ver o mundo. Não se pode dizer ao compositor que sua obra está errada, nem ao cego que a coisa não é seu cheiro nem sua forma.

Entretanto, defendo que a fundamentação filosófica permite uma condição de “destilação fracionada” da carga subjetiva presente em alguns fenômenos pessoais.

Obviamente não me encontro em plenitude, nem mesmo em eterna contemplação da pura “beleza” de existir. Sofri de tudo, na medida exata que me permiti sofrer. Para mim, não há predestinação, nem destino; há decisões e respostas. O fato é que sofri enquanto duvidei, enquanto questionei e achei demais, procurando soluções em lugares tão banais quanto a natureza dos respectivos questionamentos.

Mas o sopro da vida e o respeito ao que está além do alcance me salvou…

Algumas vezes aprender a dizer nada diz tanto que dispensa até mesmo o olhar…



PRINCIPIOS DE IMERSÃO NA REALIDADE SUPRASSENSÍVEL
Fundamentos da Natureza Superior

Após uma releitura parcial – tendenciosa - de questões filosóficas existencialistas investigadas há séculos, realizada na intenção de acionar processos mentais de introspecção, entramos, pois, no universo das possibilidades de significar fenômenos que supostamente estariam para além da compreensão racional. Embora existam efeitos funcionais, são questionáveis as causas e a carga subjetiva embutida nas representações alegóricas dos fenômenos percebidos, por estarem incoerentes com a lógica tradicional (cartesiana) usada para investigar e definir parâmetros comuns aos tais fenômenos.
Tendo na via principal a elástica Filosofia Clínica que usa, entre outros, dos métodos historicista, empírico, fenomenológico e epistemológico, agregados aos exames categoriais, tópicos de estrutura do pensamento e submodos para se aproximar de um entendimento alentado da configuração psicológica de uma pessoa; e paralelamente o que chamaremos de Realidade Suprassensível, como sendo um modelo integrado pelos acontecimentos supostamente metafísicos, seguiremos assim o trajeto proposto.
Explicando melhor, considerarei Realidade porque é assim que os fenômenos se apresentam diante daqueles que os sentem, sendo vívidos e “reais”; Suprassensível porque foge do campo de cognição habitual dos órgãos sensitivos, processadas ou por áreas ainda desconhecidas do cérebro humano, ou pela matriz bioenergética que permeia o corpo físico, ou por ambos, ou mais…
Já foram formuladas hipóteses sobre uma possível existência de um elo entre o incorpóreo (alma) e o material (corpo), inclusive o próprio René Descartes (1596-1650, considerado fundador da Filosofia Moderna e pai da Matemática Moderna) sugeriu a glândula pineal como sendo esse ponto de conexão.
Existem ainda outros defensores das capacidades transcendentais desse mesmo órgão, ao considerarem-no como uma espécie de antena, por ter na sua constituição cristais de apatita que, segundo esta teoria, vibrariam conforme as ondas eletromagnéticas que captam. Resumindo: no ser humano, ela poderia interagir com outras áreas, como o córtex cerebral, sendo capaz de decodificar informações possivelmente captadas de uma dimensão suprassensível, intrínsecas à nossa realidade animada, o que explicaria supostos fatos “paranormais”.
Essa teoria, se fosse comprovada, poderia explicar fenômenos como clarividência, telepatia e mediunidade; mas talvez a persistência em provar “cientificamente” algo dessa essência, induza mais a erros conceituais que fatos capazes de responder por si numa certa finalidade. A meu ver, a explicação apoiada na presença cristais de apatita na referida glândula é bem simplista, a não ser que a boca seja uma “torre transmissora radiônica”, devido à vasta composição de hidroxiapatita e fluoroxiapatita nos dentes... E, sendo assim, coitados dos edêntulos totais, pois estariam sem o “meio de comunicação transcendental”. Pior ainda: pobres dos dentistas, que além de toda insalubridade da atividade em si, ainda estariam sujeitos às “radiações bio-trans-eletromagnéticas telúricas bucais”… Não tenho dúvidas de que tal teoria não está nem perto do mínimo razoável a qualquer postulado, embora a boca seja de fato um âmbito singular do ponto de vista bioenergético em qualquer organismo que a tenha. Mas voltando ao cinismo da crítica, pensemos bem se as cáries ou doenças periodontais fossem causadas mais pelas bobagens faladas que pelas ingeridas, ou que o mal-hálito fosse um Sedex… Quem merece?
Todavia, brincadeiras a parte, recorrendo ao juízo que considera “paranormal” estar paralelo e simultâneo ao suposto “normal”, tratarei dessas formas especiais de percepção somente dentro dos limites do “possível” e de suas funcionalidades práticas aplicáveis ao autoconhecimento; ou, no mínimo, como um jeito de contextualizar as faculdades dos fenômenos pessoais residentes no porvir deste mesmo trabalho.
Fique claro que a Filosofia Clínica em si nada tem a ver com essas questões metafísicas em seu método - pelo contrário, se apoia em todo arsenal intelectual da filosofia milenar -, mas permite respeitar o que aquilo pode significar na vida daqueles que crêem no “além de”, conciliando as emoções pelo direcionamento terapêutico a partir do ponto em que este se torna necessário devido aos conflitos que essas vivências “trans” podem gerar – como em meu caso. Essa forma de filosofia aplicada é para mim, até certo ponto que julgo necessário, um “cinto de segurança” para que a nave tripulada pelos meus pensamentos não se perca pelo espaço infinito do meu próprio ego.
Retornemos, pois, à conjuntura das sensibilidades especiais.

Simplesmente imaginadas como seriam caso fossem. Assim a clarividência e a mediunidade se apresentam como espécies de produtos imaginológicos dos sentimentos de profundo entendimento de uma coisa que supostamente se encontra para além da sensibilidade objetiva. O esclarecimento desses mecanismos permite a real transcendência a um novo lugar (e esse lugar precisa ser fundamentalmente o próprio corpo, categoricamente).

Logo, imaginando, vamos supor que viemos da Luz que torna viva a água que nos constitui; que nossas emoções sejam incritas na expressão corporal pelos humores que captam e retransmitem as mesmas diretrizes (ondas) do “caos” que por si permite o surgimento de novas estruturas e o desaparecimento de outras; e finalmente que nossa “alma” (supondo alma como fração pura de Luz presente junto ao corpo) esteja sujeita às mesmas variações do universo, estando as relações microcosmo/macrocosmo e macrocosmo/microcosmo diretamente proporcionais à dupla causalidade emergentista corpo/mente e mente/corpo investigadas racionalmente pela Filosofia Analítica.

Nesse raciocínio, consideremos o Ser Humano como representação máxima da capacidade criativa de uma inteligêcia suporior a todas as coisas, ícone quase perfeito da complexidade orgânica diferindo-se dos demais seres pela capacidade de expressar físicamente suas emoções, cuja natureza mais intensa remeta à essência da energia universal criadora (retomando a idéia de que o que cria é o processo da criação em si). Todos os demais seres vivos seriam, então, interações inteligentes das propriedades intrínsecas do fogo, terra, ar e água, numa equação alimentada pela “luz” comum à estrutura mais íntima de todos os elementos, assumindo as mais diversas formas adaptadas ao ambiente em que se encontram.

A Física Quântica define fóton como um corpúsculo ou partícula elementar de luz, sendo entendida pelo postulado “quantum de radiação eletromagnética que tem massa de repouso zero e energia igual ao produto da frequência da radiação e da constante de Planck”. Nessa essência dual (onda e partícula), está a inteligência universal de toda dinâmica harmônica e desarmônica dos elétrons para com seus núcleos assim como os satélites para os planetas e os planetas para suas estrelas e as estrelas para as suas galáxias, e assim sucessivamente. Pensando numa progressão que parta dos átomos, ao se configurarem em moléculas e destas seguirem para tornarem-se células (em se tratando de seres vivos), passando pelos tecidos, órgãos e sistemas, constituindo organismos autônomos, fica obviamente claro que essa progressão continue em expansão, chegando ao desconhecido do universo, tomando proporcionalmente a referência de nós, seres humanos, como células, estando nós para o universo como comparados às células mesenquimais indiferenciadas, na sua capacidade criadora pela multiplicação totipotente, ou cancerígenas no processo apoptótico de autodestruição. A célula é a menor estrutura capaz de realizar basicamente todas as funções anabólicas e catabólicas pertinentes ao funcionamento de um organismo. O homem é a célula da biosfera de nosso planeta.

Pensando dessa forma, e nos transportando à suposta condição de criadores, detentores das possibilidades do universo pelo conhecimento científico acadêmico, é meio contraditório se tomar como paradigma a própria ciência cujo método institui por si a permissividade de ser refutado, o que por um lado permite evoluir com o surgimento de novas estruturas, mas, por outro, a decepção de saber tanto da tal ciência que se deixa de acreditar nela como absoluta… Pois diante dessa mesma ciência meio inconsciente, como será que a raça humana sobreviveu tanto tempo sem a alopatia, com seus antibióticos de largo espectro, antiinflamatórios potentes, vacinas, radioterapia, quimioterapia, antidepressivos, drogas para dormir, drogas para acordar, dietas mágicas, e tudo mais? Como as crianças sobreviveram tanto tempo brincando descalças na terra, ou não se traumatizaram por receberem castigos ou umas “correiadas” bem merecidas por atos que não deveriam se repetir, entre outras infinitas situações… Como?

Retornemos ao raciocínio principal.
Suponhamos que deus nos pensou como modelo biomecânico à sua imagem e semelhança, e que viemos como sementes plantadas para análise e estudo da validação da boa intenção da sua da Ciência Maior (obviamente por ser um bom deus) na busca pela linhagem genética mais parecida com a do próprio deus, para assim habitar todas as moradas do Universo. Essas sementes teriam se disseminado em microondas cósmicas, na velocidade da luz, isto é, as sementes seriam como fótons (vale lembrar que na velocidade da luz o espaço se torna “curvo” e o tempo como o entendemos não existe). A diferença de potencial elétrico entre fontes emissoras e áreas receptoras, capazes de induzir tais fótons transladarem pelo cosmos, teria sido gerada pelas cargas elétricas inerentes às massas planetárias, que funcionariam como reservatórios de elétrons, desenvolvendo polaridades e estabelecendo forças gravitacionais, até o equilíbrio dinâmico de todos componentes do universo.

No caso do planeta Terra (sobre o qual está ao nosso alcance supor de maneira mais consistente dentro de algum já saber), os fótons ao incidirem a atmosfera em seu princípio (que funcionaria como um tubo de ensaio formado pelos quatro elementos em plena fusão), alguns componentes do “tempero” fundamental desse sopão atmosférico (carbono, hirogênio, oxigenio e nitrogenio) começariam assumir certas relações interatomicas e intermoleculares, definindo geometrias áureas cujos padrões vibratórios quânticos disparariam a partir dali “faíscas” (energia de ativação) específicas ao início de combustões sequenciais chamadas pela ciência reações físico-químicas. Tais espirais quânticas obtidas da Energia Criadora, capazes de incorporar átomos e formar sistemas inteligentes de replicação, seriam novamente os ditos fótons materializados numa unidade bioenergética básica: o DNA. Nesse raciocínio, a desordem da energia pura estabelece padrões vibratórios para cada coisa que existe. As coisas com DNA são vivas e independentes, exceto os vírus, que funcionam como resíduos não-neutralizados das equações quânticas.

Pode ser que realidade e ficção sejam a mesma coisa, por pertencerem igualmente a algum ponto do tempo e do não-tempo no território das possibilidades, e também residirem latentes em nós humanos como a grande dúvida sobre nossas verdadeiras origens e do sentido da vida.

Isso estaria para o “campo real de compreensão humana” equivalente ao nível de conhecimento intelectual atual capaz de produzir “inteligência artificial” instalada e programada no funcionamento de computadores e robôs, bem como na biotecnologia e assim por diante.

Mas agora vamos pensar juntos… Após tudo que fora exposto e fundamentalmente suposto, de todas nossas propriedades mentais criadoras e destruidoras, de sermos essencialmente formados pela mesma substância do universo, regidos ou submetidos às mesmas leis e igualmente interados com o Todo, não seria possível também supor que nosso corpo em si, pela sua funcionalidade e especificidade, seja uma grande e única antena transmissora e receptora, e que todas as formas de sensibilidades especiais (ou paranormais), como a mediunidade, ou telepatia ou clarividência, não seriam em verdade manifestações vívidas de nossa profunda interação de contato com dimensões suprassensíveis ainda pouco conhecidas, ou ocultadas, ou pelo menos restritas a pequenos grupos de estudiosos do ocultismo? Basta refletir o poder que tais conhecimentos concedem a quem os detém… E por isso não serem escancaradamente revelados… Mas como esse suposto conhecimento está sendo usado? E por quem?

Por hora, pela minha própria integridade, fique claro: tudo é loucura! Mas a loucura é condição fundamental para a continuidade da leitura dessa grande viagem… Que num futuro próximo se confirmará.

Outono de 2009, 19℃

Diante de vários copos hora cheios, hora vazios, num vazio momento de devaneio saturnino e solitário, pensar sobre, por exemplo, a composição molecular do vidro, pode ser algo normal. Relembrando aquela distante aula de química, que parecia não estar em lugar nenhum, percebo sua vitalidade em imagens que confundem geometrias angulares, lineares e o belo desenho do arranjo da água em sua forma sólida e fria na vaga transparência de um copo repleto de catarse.

Assim, aos goles, sinto a força elástica de uma transição que mescla a inquietação por respostas com o terreno vazio deixado pelo desmoronamento dos pilares de várias convicções. Tantos confrontos pela busca do tempo além do tempo... Trivialidades veladas se comparadas aos alvitres de superar o “eterno retorno do mesmo”, cuja forma emerge de nossas armadilhas conceituais. Pode ser que estar atento ao brilho do amálgama “mente – cérebro – corpo - espírito” constituinte do ser humano, percebendo o papel que cada componente exerce na constituição do todo, seja mais progressista que tentar destilá-lo, pois os substratos derivados por si não se nos apresentam inteligíveis em didática cartesiana.

Próximo ao aveludado verde e úmido da parede que me cerca, vou rememorando a função do arquegônio, que recebe da água viva e corrente a célula germinativa complementar. Sigo imaginando sua disseminação pelos tijolos desnudos das vestes típicas da alvenaria, até o ponto em que aquele canto frio e mórbido, travado por histórias passadas, seja substituído por um pequeno ecossistema, onde a vida possa recomeçar. Um pouco mais ao fundo enxergo liquens, entidades de natureza mista por reunir fungos decompositores e algas autotróficas. Características adversas, mas que no somatório definem uma condição auto-suficiente quanto das necessidades básicas da existência. Os fungos solubilizam sais minerais da superfície do substrato transferindo tal composto às algas e recebendo delas açúcar originado da fotossíntese. A matéria orgânica liberada pelos liquens constitui-se como fonte ao desenvolvimento de outros elementos numa comunidade pioneira.

Toda vez que bebo um copo de água sinto como se bebesse da própria vida. O discreto vapor que se desprende de um copo de água acrescido de gelo revela que cerca de setenta por cento do meu organismo está sujeito às mesmas variações de estado conforme a temperatura, e que os trinta por cento restantes trabalham para evitar tais variações e também a desnaturação protéica, bem como para preservar demais funções que me mantém vivo.

No momento em que a água adentra minha boca, vou sentindo seu trajeto pelo palato mole, excitando o nervo vago que, obstruindo a nasofaringe, libera a passagem pela orofaringe, descendo pelo esôfago até cair no estômago que então se sente refrigerado. Ao beber um copo de água sinto que estou mais vivo, e que cada célula de meu organismo receberá nutrientes diluídos nessa água e por ela mesma os resíduos serão eliminados.

Meu corpo funciona como um corpo normal; mas o habitante desse mesmo lugar, o corpo, permanece em conflito.

Por um lado, minha imaginação imprime maior singularidade às condições reais descritas pela capacidade de minha mente em criar e reproduzir tais imagens, sendo que essa atividade criadora anímica tem por base não apenas representações, mas também idéias abstratas. Representações e idéias associam-se espontaneamente na atividade criadora para formação de imagens e pensamentos novos. Dessa forma, os adornos subjetivos de linguagem e sensação associados a conhecimentos científicos da minha formação permitem novas formas e novos conceitos artísticos de expressividade do meu eu.

Por outro lado, existe um limite não muito bem definido entre imaginação e alucinação. A alucinação pode ser descrita como uma imagem fantástica que adquire caracteres de sensorialidade necessários para ser aceita pelo juízo de realidade como proveniente de um objeto exterior. Sendo assim, as alucinações são falsas percepções corpóreas que não se originam, por transformação, de percepções reais e sim de modo inteiramente novo, e que surgem paralelas e juntamente com percepções reais.

De qualquer forma, sempre existiram vozes que falavam mais alto dentro de mim. Vozes confusas, sensivelmente intuitivas...

Seriam essas vozes alucinações auditivas? Sonorizações onde meus próprios pensamentos se manifestam em palavras como se fossem pronunciadas por uma terceira pessoa exterior? Diálogos alucinatórios que falam de coisas agradáveis ou desagradáveis? Seriam essas vozes capazes de me despersonificar diante de ordens ou comentários sobre meus atos?

Ao certo nada sei, mas diante de tantos questionamentos sigo meu propósito de descrever fatos particulares os quais tenho certeza serem também fatos plurais. Posso afirmar ainda que renascer e amadurecer tem muito a ver com suprimir ou, às vezes, dialogar com essas vozes. Ao modo dos liquens, os componentes de natureza tão oposta quanto complementar presentes em nosso interior devem se unir e reagir à mais inóspita condição, recebendo a nutrição que vem do céu.

Essa reação deve se dar no mais absoluto e sereno silêncio. Silêncio do amor a si equivalente ao seu potencial em ser comutado com o próximo. Silêncio do signo de respeito às singularidades, sem hierarquias, supremacia ou superioridade.

Continuando num relativo modo vulgar, cada um deveria cuidar de sua própria vida, e todos respeitariam os limites dos outros tendo respeitados os seus. O problema é que parece não ter graça recriar novas formas de pensar. Buscar na imperfeição alheia compensação para aceitação da própria parece ser mais cômodo. Efetuar atividades sistemáticas vendendo tempo por objetos superficiais de desejo também insinuam maior valia. Saber quanto o outro ganha e tem, sendo ter equivalente a ser, também parece ser mais gratificante.

Obviamente estamos num sistema; e tolo de quem se sentir superior tentando modificá-lo. A proposta é simplesmente deixar internamente um espaço para o que é do mundo e outro para o que seria uma espécie de “além mundo”

Questões sobre a natureza do conteúdo intencional do som estão presentes em Filosofia Analítica, segundo a qual “ouvimos” os sons fora de nós, apesar de eles ocorrerem no nosso cérebro. Essa é a sua intencionalidade ou direcionalidade. Mas será possível dizer que ouvimos sons de dentro da nossa cabeça? Ou seja, será que podemos falar que ouvimos nossos pensamentos? Mas como será possível ouvir essa voz do pensamento se nossos tímpanos só podem ouvir o que vem de fora?

Na tentativa de amparar uma teoria que concilie aspectos filosóficos, cognitivos e físicos dos sons, darei a minha parcela de colaboração.

O que vem adiante e parece desconexo é a captação da freqüência das legiões que se medeiam ao mundo pela mente de pessoas como a que vos escreve. À medida do possível tentar-se á obter maiores esclarecimentos através de perguntas e relativas respostas.

FENOMENOLOGIA PESSOAL

Muito mudou desde quando resolvi aceitar uma força maior acreditando ser isso o correto. Mas o que me fez acreditar que isso era o correto? Foram apenas três perguntas: Quero? Posso? Devo?

Como qualquer outra experiência que requer longos estudos, reflexões e sensações, o aprimoramento desse canal de comunicação com o lado de lá foi se dando aos poucos – o “lado de lá” está, para mim, no território inconsciente das “vibrações” suprassensíveis processadas sutilmente pelo mental.

Representando máxima referência da conjugação entre sensorial e abstrato, a música tornou-se a principal via de assimilação das idéias puras, e o canal de sintonia com o “além eu em mim”.

Essa visão auditiva me foi instituída inicialmente de forma intuitiva, através de um sonho, mas o curso natural e sobrenatural das coisas foi iniciado pela dor física e psicológica – entendam-se dores verdadeiras, com liberação de prostaglandinas e demais mediadores químicos somados aos componentes emocionais associados.

Através de vozes (sonorizações altíssimas do turbilhão de pensamentos) e sonhos (atividades oníricas relacionadas às emoções geradas pelas experiências vividas, inscritas nos humores pelos padrões vibratórios sinestésicos “residuais” desencadeados pelo sistema nervoso autônomo sobre áreas cerebrais responsáveis pelo processamento de imagens e sons), entidades do primeiro degrau da dimensão suprassensível começaram a se me apresentar.

Essa sensação de que se atingiu outra dimensão pode ser um fenômeno “absolutamente físico”, porque o córtex pré-frontal, no qual “reside” a atenção (sendo também a área cerebral que estabelece com o tálamo o mecanismo da dor associada aos componentes emocionais, que variam de pessoa para pessoa), diminui significativamente sua atividade, fazendo que a pessoa perca a noção de tempo e de espaço. Mas convenhamos: com obviedade tem que ser um fenômeno físico, porque estamos num corpo físico… Mas por que perder a noção de tempo e espaço define um fato científico, portanto não transcendental, se tempo e espaço são produtos de nossas percepções objetivas definidas em convenções?

Formulemos a seguinte questão: o tamanho da imagem de um objeto diminui ou aumenta à medida que ele se distancia ou se aproxima de nosso campo de visão? A idéia imediata é que sim; mas, na verdade, não, pois a imagem é a reflexão da luz pelo corpo físico do objeto, ou seja, é do tamanho exato do objeto. Logo, não se altera, mas é visualizada cada vez menor ou maior conforme o movimento… Igualmente, ilusões de ótica geradas pelo movimento de espirais em preto e branco por cerca de 30 segundos nos fazem ter a sensação de ver objetos estáticos se movimentarem em profundidade. Embora a ciência tenha acertado ao ter o caminho empírico das sensações através de experimentos como diretriz mais eficaz do desenvolvimento das tecnologias, sempre cabe lembrar que nossos sentidos podem nos enganar; ou que as próprias tecnologias e interesses subliminares associados podem induzir o engano dos nossos sentidos.

Examinemos o fato de que uma lobotomia pré-frontal - que corta a ligação entre córtex pré-frontal e tálamo, referentes aos componentes emocionais da dor - torna apenas incômodo certo estímulo que numa condição anterior à cirurgia causaria extrema dor. Não seria, então, possível que mecanismos de autocontrole (iniciados pelo domínio do inconsciente pela ativação de áreas em “stand by” no cérebro, principalmente através da respiração correta), poderiam interromper a austeridade do ego no processo consciente, gerando um estado “nirvânico” rumo à extinção do sofrimento? Não seria esta linha de raciocínio uma forma buscar funcionalidade prática à questão da causalidade dos mecanismos morais sobre o comportamento, tão especuladas pela filosofia, pelas vias de padrões de conduta que sugiram um encontro de si através de uma comunhão ideológica de paz entre os homens e o meio ambiente? Não poderia essa idéia desenvolver uma verdadeira evolução intelectual reunindo ciência, filosofia e fé?

De certa forma, as próprias dores (física e emocional) acabam determinando um “caminho invertido” dos mecanismos de autoconhecimento pelas superexcitações neurais, gerando mediadores químicos que escancaram as portas da suprassensorialidade de maneira traumática. Numa figuração popular, seria a expressão “todos conhecerão a Deus, pelo amor ou pela dor”. Pelo amor seria a extinção da dor pela paz. Pela dor o que fora citado. Conhecer a deus igualmente a conhecer a si como integrante do Todo.

Comigo foi pela dor… Contarei.

Certa noite me sentia extremamente desconfortável pela falta de familiaridade com o lugar onde eu dormia. A temperatura era cerca de 12℃, e o espaço insuficiente me deixava sufocado e ainda mais ansioso. Não havia mais água, eu havia me esquecido de comprar. Mas o refrigerante gelado supriria a sede, se não estivesse sem gás. Sem sono e tomado de uma ansiedade que misturava insatisfação e deslocamento, comecei desesperadamente escutar os ruídos dos primeiros ônibus por volta das 04h00min. A perturbação causada pela idéia de não dormir e trabalhar todo o dia seguinte era cruel, quebrei o “tic-tac” do relógio destruindo o relógio, era ensurdecedor. Eu sentia pena de mim, e ao mesmo um ressentimento por estar assim, considerando eu ser uma pessoa boa. A raiva alimentava minha rebeldia, que se revelava nos pensamentos de abandonar tudo e sair daquele lugar. Não tolerava nem o barulho do relógio, nem as vozes de quem circulava pela rua, nem a iluminação do meu rádio, nem o cheiro do cigarro que havia fumado há pouco. Ao mesmo tempo uma soberba inspirava a busca da superação de tudo sozinho, sem ajuda de ninguém. Tentei mandar nos meus pensamentos para adormecer, mas também não funcionou. Em seguida, fluíram inconvenientes sentimentos de autocomiseração, pois me acomodar com a situação me deixaria numa posição que permitiria exigir a compreensão dos outros. Minha vontade de possuir o suficiente para sumir pelo mundo rotulava minha ganância. Cheguei a culpar meus pais e deus por existir nessa vida infeliz. Queria ser levado por “Ele”, era preferível isso a permanecer aqui. Minha indiferença pelas pessoas e mais ainda pela minha representação na vida delas me destituía de qualquer vontade. Estava insatisfeito, impaciente, com medo e principalmente com ódio de mim mesmo, o que gerava culpa por tantos erros. Invejaria qualquer pessoa que eu visse dormindo ou sorrindo espontaneamente, sem artifícios. Fingia estar bem e desdenhava opiniões de boa fé que davam a respeito da minha melhora.

Na mesma época, as cólicas renais se tornavam mais freqüentes, e chegou um tempo que sentia todo o trajeto das pedras passando pelos ureteres, alfinetando minha bexiga e depois de horas ou dias sua passagem final pela uretra. Avaliava a presença de sangue, e tomava os antibióticos por conta própria quando havia febre. De toda essa dor, ansiedade, solidão, retraimento, tensão, remorso e insônia derivaram ideações suicidas e, em alguns casos, homicidas.

A depressão foi tão grande que pensei: se deus é tão bom e misericordioso ele me perdoará se eu me matar porque sabe o quanto estou sofrendo, e que minha cura, a morte, seria a única maneira de aliviar minha dor e meu sofrimento. Idéias complexas e desconexas, absolutamente abstratas, que tomavam forma e aferiam minha coragem. Grande é a dor de quem não descansa… E de repente, não mais que de repente, estava acordado para mais um dia.

Nessa época, num no sonho de uma efêmera madrugada de sono, escutei uma música instrumental, maravilhosa. Era desconhecida, e parecia o som de naves transitando pelo espaço onde alguém com um instrumento musical se comunicava… Foi muito bom, sentia aquele som preencher meu corpo fazendo arrepiar… Acordei chorando. Naquele momento percebi que algo muito maior existia… Refratada pelas lágrimas purificadoras, havia sentido a luz reconfortante através de uma música orquestrada pelos meus pensamentos livres.

No decorrer do dia seguinte o que mais me envolvia em termos de ansiedade era a vontade de ir pra casa dormir pra sonhar novamente com aquele som. Eu estava em outra sintonia – alheio aos sentimentos de mundo, às pessoas e ao próprio mundo.

Pensando convicto que a música seria uma oração se envolvesse alguma fé, deixei minhas mãos livres sobre a guitarra. Pedi a Deus (da forma como o entendo) que me orientasse fazer uma melodia cujas vibrações permitissem sentir sua presença. Nesse momento senti a força que não pertencia a mim, mas me tocava. Respostas, eu queria respostas. Depois de um F#, a bíblia caiu da minha estante na página que dizia sobre Daniel na cova dos leões.

Percebi nitidamente que outras entidades estavam presentes naquele local. Essa certeza me deixou excitado por me sentir na condição de aceitar ou não a manifestação delas em mim e diante de mim.

Poderia aceitar a explicação lógica de que as ondas emitidas pelo acorde entraram em ressonância com o corpo de madeira da estante, fazendo vibrá-la; e a bíblia, que estava próxima à beirada, se movimentou a ponto de cair. O referido capítulo seria nada mais que um dos milhares existentes.

Uma refutação à possível manifestação sobrenatural presente no ocorrido seria essa. Mas então desafiei seja lá o que fosse. Joguei a bíblia para cima, virando as costas antes que caísse... Mas para meu espanto, mesmo sendo menos viável que acertar na loteria, a página aberta foi a mesma. A bíblia estava recomposta no chão como se alguém o tivesse feito.

Minha perplexidade não era maior que a tensão muscular depois de me sentir tomado por um calafrio que fazia arrepiar os ossos. Era como se o grande globo de cristal da razão, do tamanho exato da minha mente, se partisse em milhares de pedaços equivalentes às estrelas que compondo o infinito aparecem apenas no escuro. Constelações de fatos que só poderiam ser unidos por traços imaginários, como se formassem um zodíaco que guarda a verdade.

Ainda duvidando, estudei sobre Daniel. A verdade lhe fora revelada pela capacidade de interpretar os sonhos, tendo sido treinado pelos anjos de Deus. A mística considera os sonhos como meio de comunicação, da mesma maneira que a música e outras artes que importam do “abstrato” formas de exteriorizar a representação do “além” no campo sensorial humano.

Mas e se eu considerasse tudo apenas como alucinação, que Daniel nem tenha existido, que leões sejam apenas alegorias e que deus não seja nada além da concepção de Daniel sobre deus da forma como ele o entendia?

Creio que pensar dessa forma seria o exagero máximo do ceticismo, mas é direito de quem o quiser fazer. Nada está pronto, tudo é relativo e dinâmico.

Duvidar refina as conclusões.

A imaginação é diretamente proporcional às impressões adquiridas sobre situações semelhantes que, no campo das idéias, se reorganizam de maneira complexa e não condescendente com o que se exige de um fato para este ser considerado como tal num aspecto exato e, portanto, científico.

Aceitar ao semelhante que só pode ser visto diante do espelho implica, antes de tudo, suprimir os próprios conceitos e abordá-los sob uma luz própria, isto é, discernindo o motivo de suas significações, vontades e representações.

Dispensando a fé da parte de quem lê de que tudo é verdade, a sugestão é refletir no contexto geral sobre o que isso tudo pode significar dentro da própria vida a respeito da morte.

Continuemos contando.

Cap. 05

Locomotiva da morte, rumo à estação Luz

Nos meus primeiros tempos de habitante da região metropolitana, viajar de trem era exótico. O cheiro das pastilhas de freio aromatizava a paisagem de favelas contrastando os condomínios fechados em meio ao pouco verde que ainda existe. Olhando pela janela adornada de um tipo de plástico como se fosse vidro tentava ler os escritos arranhados por diversas pessoas. Considerações do tipo “força jovem”, “se deus vier ao mundo que venha armado”, “sangue e coragem” ou puramente “Fe, te amo para sempre” me assustavam. Tentava entender, ou melhor, imaginar o contexto psicológico vândalo de quem infringiu tais inscrições num patrimônio “público”. Talvez o desejo de imortalizar aquela referida condição... Bem, não sei. E mesmo que visse alguém fazendo ficaria bem quieto. Mas de tudo, o que mais me chamava a atenção eram as cruzes. Ao longo de todo trajeto havia cruzes pretas invertidas pintadas nas paredes e pilares das pontes e viadutos. A princípio imaginei que fossem marcações da CPTM, mas logo descartei a hipótese. Que tipo de pessoa, seita ou sei lá o que dispensaria tanto tempo marcando cruzes negras invertidas ao longo da ferrovia? No satanismo a cruz invertida representa escárnio e rejeição a Jesus Cristo e o desprezo ao evangelho da salvação.

Às vezes via situações bem inusitadas. Pessoas e feições diversas. Vendedores ambulantes aos berros na defesa da qualidade de seus produtos, saltando vagões, fugindo dos fiscais. Sempre surgiam os pregadores de diversas igrejas de diversas crenças falando aos montes. Umas pessoas reagiam indiferentes, outras insatisfeitas demonstravam pensamentos nocivos. Uns perfumados, outros suados. Uns lendo ou dormindo, outros jogando. Todos num mesmo vagão em direção à estação Luz.

Sentou-se ao meu lado uma senhora. Eu simplesmente desejei boa tarde e me acomodei para lhe ceder espaço.

_ Olha moço, sabe que nunca ninguém me desejou boa tarde no trem?

_ Sério?

_ Sim, e faz muito tempo que freqüento esse trem. Sabe que você me lembra muito meu filho?

_ Fico feliz, espero que tenha apenas boas lembranças de seu filho – assenti suavemente sarcástico, duvidando da capacidade de entendimento da interlocutora, sem saber o que viria em seguida.

_ Sim, era um rapaz muito bom. Estudava, trabalhava, estava comprando um apartamento...

Permaneci olhando o filme que se passava ao fundo dos olhos daquela senhora de nenhuma vaidade, que se permitia estampar na própria aparência toda sua trajédia.

_ Mas meu filho faleceu – continuou -. Ele gostava de uma mulher que acabou com a vida dele. Depois que terminaram o casamento ele entrou numa tristeza profunda. Não podia mais ver meu filho daquela maneira. Tão bom rapaz, um filho maravilhoso, nunca nem alterou a voz para mim. Era um ótimo auxiliar de enfermagem, mas numa certa noite tomou uma dose fatal de medicamentos... Encontraram seu corpo numa área de serviço do hospital, o médico de plantão estava dormindo e quando acordou para fumar o viu.

_ Sinto pelo seu filho, mas ainda estamos muito distantes de entender o que faz uma pessoa perder o sentido de viver. Penso que se um dia soubermos isso poderá ser evitado. Você tem mais filhos?

_ Tenho uma filha, uma grande desgraça.

_ Como assim uma grande desgraça?!

_ Ela engravidou e tirou o resto que eu ainda possuía.

_ Mas como? Uma filha grávida não seria um motivo de felicidade?

_ Talvez sim se o pai da criança não fosse meu ex-marido. Ele assediava minha filha de apenas 14 anos, do segundo casamento, enquanto eu trabalhava. Esse meu terceiro ex-marido era mais jovem. Eles fugiram juntos. Minha dor foi tanta que não sei explicar. Logo depois tive um câncer, perdi meu útero e fiquei seca. Meu primeiro marido, pai do meu falecido filho era segurança de um banco e morreu assassinado. O pai da minha filha se foi enquanto ainda estava grávida. Isso seria um motivo para perder o sentido da vida, senhor?
Nesse momento um mal estar me causou enjôo, e um cheiro muito forte de enxofre se fez presente. Fechei meus olhos e levei a mão à cabeça... Foi quando uma pessoa se sentou abruptamente no lugar da senhora que não estava mais presente. Tive um choque, enquanto isso algumas pessoa resvalavam risos. Era como se ninguém estivesse ao meu lado enquanto eu, conversava sozinho. O novo ocupante se dirigiu a mim e perguntou em qual estação eu desceria...

_ Você viu a senhora que estava aqui agora? Você se sentou no lugar dela! – Perguntei.

_ Não posso ver, senhor, eu sou cego. Mas sim, eu senti uma pessoa aqui. Por favor, em qual estação vai descer?

_ Luz. Vou para a luz.

_ Pode me ajudar chegar à plataforma de Guaianazes?

_ Sim... Claro que posso. Você é cego desde que nasceu?

_ Nessa vida, sim. Na minha última encarnação eu presenciei um adultério que antecipou a minha morte. Foi quando decidi que se nascesse novamente não gostaria de enxergar.

_ Pelo amor de Deus. Eu só posso estar louco. Que papo é esse de encarnação, meu amigo?

_ É... Você deve estar dando muito trabalho aos espíritos. Mas tudo é uma questão de tempo, seria mais fácil aceitar sua missão. Chegamos, pode me ajudar?

Descemos do trem de braços dados, esperamos o tumulto diminuir para pegar a escada rolante. Nenhuma palavra a mais fora pronunciada. Quando olhei de volta ao trem, que já partia, vi novamente, dessa vez pela janela, o semblante mórbido e os olhos vítreos daquela senhora... O arrepio endurecera meu pescoço e meus ombros… Quando deixei o cego na plataforma, ele me agradeceu sem muitas palavras. Aguardei a certa distância sua partida com o auxílio de uma nova pessoa.

Não dava pra saber o que tinha se passado. Desisti imediatamente de pensar no assunto. Desconectei minhas idéias do princípio de entendimento racional. A verdade estava longe da minha capacidade em concebê-la. Eu vi e falei com um espírito ou toda aquela atmosfera hostil das pessoas do trem me gerou uma idealização que representasse a tragédia humana numa alucinação, na visualização da referida senhora?

Mas sendo assim, o que foi o cego me falando aquilo? Teria ele entendido meu contexto porque sua percepção de imaginar as coisas assim o permitiu? Ou estaria tudo ligado a uma força providencial?

Decididamente eu precisava rezar e procurar um médico. Essa ambígua pretensão iniciou-se tão logo cruzei a Praça da Sé, ao me sentir atraído a entrar na catedral. Misturada ao comércio informal, poluição, prostitutas, usuários de drogas, crianças degeneradas, pessoas normais e algumas freiras estava a porta do templo católico.

Diante das imagens e do altar as lembranças se faziam presentes. À mente vinham idéias do passado, da época que freqüentava as missas, de quando fui catequista e de quando era coroinha. Nostálgico e singelo era meu passado católico. Não lembrava mais a partir de que momento me afastei dos rituais. Independente de qualquer coisa, na época não me sentia mal em participar de missas cujos celebrantes de uma forma ou de outra estavam associados a algum escândalo. Entendia a limitação deles, enquanto homens. Tentava buscar valia pelas intenções. Lembrei-me de minha última confissão, na crisma, há muito tempo. Foi muito bom o papo, muito sensato, inclusive. Mas acho que desisti de ir por ser muito cansativo. Quando a oração do Pai Nosso era cantada eu queria morrer. Chegou num ponto que ir à missa era em si uma forma de penitência pelos meus pecados. Não suportava aquele tanto de gente hipócrita fingindo acreditar e entender tudo, abrindo a boca, fazendo barulho. Acho que comecei perceber que pecava mais indo à igreja que não indo.

Mas nesse dia eu estava numa concepção diferente. Meu Deus, eu tinha conversado com alguém que não existia! A qualquer que contasse isso ou iria rir ou querer me internar. E o cego? O que foi aquilo? Seria o caso de me confessar com um padre? Não pensando que necessariamente o padre seja capaz de absolver meus pecados, e sim como pessoa pela formação capacitada a lidar de forma mais própria com questões de ordem sobrenatural, dentro das convicções de minha formação católica, resolvi me dirigir ao confessionário.

Cap. 06

A sensação de ridículo quase me impediu, mas a saudade do tempo em que podia confiar num padre foi maior. Pelo horário não haveria mais atendimento, mas mesmo assim adentrei ao cubículo sacro, âmbito da mais antiga e tradicional forma de terapia verbal que conheço. Tão importante quanto o confortável sofá do psiquiatra - ou o divã do psicanalista - foi o confessionário, durante muito tempo, para muitas pessoas, como lugar de suas inconfidências e da crença em absolvição.

Quando percebi que não havia ninguém do outro lado, decidi sentar. Seria aquela forma de permanecer ajoelhado uma maneira de cansar o pecador para ele contar mais rápido seus pecados e a fila andar? Meu Deus, o que estava eu fazendo ali?

Pensando em voz alta pronunciei: “mas também o que eu diria ao padre se ele estivesse aqui, que estou tendo visões?” Nesse momento um calafrio novamente invadiu meu corpo de maneira tão forte que quase vomitei. Dessa vez senti um odor de incenso, o mesmo que difundia nas missas de primeira sexta-feira do mês. Entrei num transe consentido e comecei escutar o terno som do órgão da catedral.

_ A paz esteja convosco. Contar o que o trouxe até aqui é um bom começo, jovem rapaz.

_ Me desculpe, achei que não havia ninguém...

_ Achar não é suficiente. O que o aflige? A perda de noção entre o que é real e o que não é? As respostas são concedidas a quem as procura no lugar certo. Inteligência, sabedoria e sarcasmo respondem apenas parte do que lhe é concedido saber. Ajoelhe-se.

_ O que está acontecendo?

_ Ajoelhe-se e abaixe a cabeça, apenas escute! Aprenda ouvir! Preparado ou não terá respostas, e caberá seu testemunho posterior como prova de fidelidade a Deus que te resgata das profundezas da tristeza humana. A maior colaboração que pode dar aos desencarnados é sua oração e colaborar que seu número não aumente fora do plano que Deus tem para cada um. As almas necessitam que os vivos trilhem o caminho do bem para sua ascensão moral e espiritual, mais nada, deixe que os mortos enterrem seus mortos.

_ Santo Deus, eu devo estar muito louco. Isso não é possível! Desafio, pois, a capacidade de suas palavras me persuadirem.

_ Humano estúpido, mal agradecido, pretensioso e arrogante. Não acredita? Não tem fé? Saiba, pois, que fé e razão constituem como que duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise de conhecer a ele, para que, conhecendo-o e amando-o, possa chegar à verdade plena sobre si próprio.

_ O que se me fala verdadeiramente faz parte do meu tormento... – nesse momento me ajoelhei e baixei a cabeça – E como posso fazer isso?

_ A humanidade segue progressivamente ao encontro e confronto com a verdade. Esse caminho se faz no âmbito da autoconsciência pessoal. Quanto mais o homem conhece a realidade e o mundo, tanto mais conhece a si mesmo na sua unicidade, ao mesmo tempo que nele se torna cada vez mais premente a questão do sentido das coisas e da própria existência. O que chega a ser objeto de nosso conhecimento torna-se por isso mesmo parte da nossa vida. A recomendação “conhece-te a ti mesmo” serve para testemunhar a verdade basilar que deve ser assumida como regra mínima a todo homem que deseje distinguir-se, no meio da criação inteira, pela sua qualificação de “homem”, ou seja, enquanto “conhecedor de si mesmo”. O grande mal que assombra e destitui o homem de sua capacidade intelectiva quando da reflexão sobre o sopro do criador é o egoísmo. Considerar-se supremo e senhor de si, dono da verdade e capaz de refutar manifestações óbvias da ação do Pai sobre a vida do homem. Esse é o verdadeiro mal. O resto é a representação de uma sintonia que não é a de Deus. O que você procura?

_ A verdade... Mas não sei qual verdade. Gostaria de provar a mim que muito do que se sucede não é verdade. Talvez o que me mova é a vontade de algumas verdades serem mentiras.

_ Porque assim teoricamente não assumiria responsabilidade sobre elas. Para isso basta a ignorância. O conhecimento gera responsabilidades que as pessoas parecem ter preguiça de assumir. Mas sem conhecimento não há evolução, muito menos um sentido para a vida.

_ Sim... Mas... Enfim, continue...

_ Analisando a história antiga, basta um olhar para ver com toda clareza como surgiram simultaneamente, em diferentes partes da terra animadas por culturas diferentes, as questões fundamentais que caracterizam o percurso da existência humana: De onde venho e para onde vou? Quem sou eu? Por que existe o mal? O que existirá depois dessa vida? Essas perguntas encontram-se nos escritos sagrados de Israel, mas aparecem também nos Vedas e no Avestá; são encontradas tanto nos escritos de Confúcio e Lao-Tse, como na pregação de Tirtankara e de Buda; e assomam ainda quer nos poemas de Homero e nas tragédias de Eurípedes e Sófocles, quer nos tratados filosóficos de Sócrates e Platão. São questões que têm a sua fonte comum naquela exigência de sentido que, desde sempre, urge no coração do homem: da resposta a tais perguntas depende efetivamente a orientação que se imprime à existência.

_ Então eu poderia dizer que a vida como vontade e representação emana do arbítrio exercido diante da manifestação particular desses questionamentos?

_ Fundamentalmente sim. Tais questões estando mal resolvidas despertam uma vivência superficial, sem respeito nem amor ao próximo, posto que acima de tudo está a pulsão de consumar a realização dos próprios desejos e interesses, o que classifica um quadro de egoísmo, essencialmente do qual se origina todo o mal.

_ Mas onde estão as verdadeiras respostas a tais questionamentos?

_ Ignorando que deva me negar responder tal pergunta, digo apenas que não há verdade absoluta, pois se assim fosse não existiria fé, nem o livre arbítrio para escolher o sentido da própria existência. As pessoas seriam como robôs e seguiriam uma certa receita conceitual sobre viver, sobre o certo e o errado. Por outro lado uma ausência total de referências gera um mal ainda maior. Digo então que a verdade está na assimilação de conhecimento, que sendo finito leva a situações como a sua, não que esteja pronto ou tenha muito conhecimento, mas talvez o suficiente para estar aqui. Assim Deus o definiu.

_ Não compreendi bem os limites entre uma coisa e outra. O que se pode esperar então de casos como o meu, tal como me foi dito?

_ Acreditar na missão de Jesus Cristo, como sendo o caminho, a verdade e a vida. Isso irá integrá-lo ao esforço comum que a humanidade realiza para alcançar a verdade. Por outro lado isso requer o anúncio dessas verdades adquiridas, ciente todavia que cada verdade alcançada é apenas mais uma etapa rumo àquela verdade plena que há de manifestar-se na última revelação de Deus: “Hoje vemos como por um espelho, de maneira confusa, mas então veremos face a face. Hoje conheço de maneira imperfeita, então conhecerei exatamente”.

_ Considerando que eu faça isso como fica a questão dos mortos?

_ Fica a certeza de que a alma supera a morte do corpo, mas sua ligação com esse mesmo corpo pode permanecer numa via indefinida quanto ao seu destino depois de desencarnada. Ajudar os vivos é ajudar os mortos. Não deve se preocupar com essa situação. Apenas aprenda com eles o que for possível, tentando aplicar isso na “vida real”, da forma como a entende. Essa ajuda se constitui principalmente no anúncio de Deus. Não com palavras, privações e nem sacrifícios. Apenas com bons exemplos e atitudes simples, ao nível de caridade, pessoas como você podem desarmar o inimigo.

_ Inimigo? Quem é o inimigo?

_ O inimigo é uma ausência que dispersa a atenção das pessoas e as conserva no campo das sensações, despojando-as das reflexões sobre o mal decorrente disso. É o que chamamos de tentação. As pessoas que caem em tentação logo pagarão com a tristeza diante do vazio de viver em função delas. Sabe bem como é isso, não sabe?

_ Sim. Eu sei muito bem como é estar assim... Mas algo ficou meio vago. O maligno é uma entidade?

_ É uma ausência que em determinadas circunstâncias se apresenta de forma plástica, não necessariamente vinculada ao conceito de mal, embora às vezes pareça. O mal se disfarça.

_ A pergunta é: existe um antagônico a Deus?

_ Dentro de nossa proposta sobre o que é da vontade de Deus, sim.

_ O diabo existe?

_ Claro que sim. O diabo é um servo dissidente de Deus. Ele é o contraponto, o inverso. Atualmente julga ajudá-Lo através da dor e do sofrimento que gera naqueles que não merecem misericórdia, excitando as pessoas a entrarem num inferno pessoal cada vez mais amplo. O problema é que na conclusão dele ninguém mais merece o amor de Deus.

_ Mas por que Deus permite que ele exista?

_ É da vontade de Deus conceder opções quanto aos caminhos a serem seguidos. O equilíbrio requer a presença dos opostos.

_ Mas por que Deus permite tantas tragédias? Tanta dor? Deus é injusto!

_ Deus não interfere numa lei que ele mesmo estabeleceu no conceito angular do equilíbrio do universo. A independência intelectiva, o poder de criação e destruição são traços divinos que compõem o homem. Se Deus agisse em função das vontades individuais tudo estaria fadado à destruição. O mal não é um problema de ordem divina, mas sim do homem com seus semelhantes.

_ Mas o que me diz dos justos que morrem por ideais absurdos, assassinatos absurdos... Por que Deus não age somente nesses casos?

_ Isso mudaria tudo, romperia o equilíbrio. O que posso dizer é que as referidas almas encontram uma nova morada e são muito bem acolhidas. De qualquer forma você deveria refletir sobre a parcela de colaboração que pode dar aos vivos, no sentido de minimizar as disparidades e o sofrimento, anunciando a Verdade.

_ Então acha que se eu sair daqui e falar que conversei com um espírito - ou seja lá o que for - alguém vai acreditar? Nada que eu dissesse diante de tal argumento teria validade prática. Sem contar o questionamento da vaidade conceitual a despeito da minha descrita Verdade sobre a maneira como tal me fora revelada. Isso colocaria tudo abaixo. Nosso tempo nem mesmo acredita de coração que Deus existe, e eu mesmo o coloco a prova. Mas vejo que a exibição do meu desentendimento é do tamanho exato do meu não juízo, que por sua vez em nada se fundamenta, a não ser na idéia de em nada se fundamentar. Uma ideação de tipo profeta não faria nada além de aumentar a dose medicamentosa, que por hora tenho tentado dispensar, aceitando aos poucos o sofrimento...

_ E quem disse para fazer dessa forma? O exemplo máximo já não viera de Jesus, o Cristo? Você deve simplesmente anunciar a Verdade, agregando conceitos que reforcem sua legitimidade. Variados são os recursos que o homem possui para progredir no conhecimento da Verdade, tornando assim cada vez mais humana a sua existência. Dentre eles sobressai a filosofia, cujo contributo específico é colocar a questão do sentido da vida e esboçar a resposta. Ela demonstra de diferentes modos e formas, que o desejo da verdade pertence à própria natureza do homem.

_ Mas por que eu tão imperfeito que sou?

_ Não só você, mas sim todos aqueles que sofrem da alma e desejam e buscar a verdade. Pessoas cuja natureza psíquica anseia por padrões filosóficos mais elevados. Pessoas que questionam e apóiam a revisão das leis em vigor, que buscam um sentido mais profundo para a vida e se interessam pelos poderes da mente capacitando-as a longos distanciamentos...

_ Tudo isso é admirável, realmente admirável. Uma loucura no mínimo admirável. Mas sinto que na busca parapsicológica e metafísica as respostas geram, em progressão geométrica, outras infinitas faltas de respostas, enquanto no meu interior persiste um vasto vazio sobre quem realmente sou e o que realmente quero saber. O porquê de meu resumo à condição humana acaba sendo o correto questionamento acerca de mim, e não mais sobre os outros ou o além. Apenas respeitar e ser respeitado, única lei. Amar o próximo e a si é dar a ele e principalmente a si condições de viver respeitando para ser respeitado.

_ É um bom modo de recomeçar, onde havendo sucesso haverá o bom exemplo.

_ Mas ser exemplar não sugere a necessidade de uma aceitação alheia no sentido de ser percebido e copiado?

_ Se for bom, por que não? Há o direito de buscar o olhar alheio, desde que recebido apenas se consentido.

_ Mas e a vaidade?

_ Se for bom não haverá sequer vaidade que não seja bem quista.

_ E bem querer seria...

_ Seria como tudo aquilo que faz bem, não mal, subjetiva ou coletivamente, como quiser.

_ Mas e se o que faz bem ao corpo não faz bem à alma, ou o oposto disto?

_ A presença dos opostos é substantiva e situa o equilíbrio angular do universo.

_ É impressão ou a reflexão a propósito de minha própria verdade, integrada a uma verdade dignamente maior, realmente promove um encontro com a vida em sua vontade de ser vivida?

_ Não só com a vida em sua vontade de ser vivida como também com a preparação para a vida eterna. A própria fé se torna a razão da fé.

_ Mas isso pode ser uma alucinação. Posso até aceitar toda essa nossa conversa, mas isso não implicará qualquer tipo de devoção. Sua voz nada mais é que minha própria voz!

_ Definitivamente ajudá-lo se torna difícil se não aceitar auxílio. Não cabe mais a nós. O espírito do orgulho e a força das decepções cerraram seu coração. Há raros que nos encontram pelo amor; optando pelo caminho da dor terá um novo pastor. Foi-lhe dado conhecer a Verdade de Cristo pelo poder do Espírito Santo. Ao negar essa Verdade, estará perdendo a sua salvação.

Às seis da tarde acordei, ainda no confessionário. Tivera um sonho... Sentindo um frio imenso cruzei toda catedral, antes de sair pela porta escutei uma voz me chamar, que parecia vir do altar. Virei as costas com muito cansaço e me dirigi ao metrô. Desse dia só lembro depois disso que cheguei em casa e dormi pelas 9 horas e 33 minutos que se seguiram, mas não sem antes abrir a bíblia aleatoriamente, onde dizia: “Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, porque é número de homem; e o seu número é seiscentos e sessenta e seis”. Apocalipse 13.18