quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Um chopp

Às vezes fosse descaso do acaso, mas se não acreditado o acaso, fosse tão somente semente de um caso raso, como qualquer um, nem raro e nem comum.
Houve então um sujeito que enquanto dependeu enquanto viveu, fingiu que acreditava, de forma que temia mas não descartava, e questionava experimentando, ou experimentava comedidamente questionando.
Prosperou numa fila, que lembrava uma cáfila cruzando o deserto, e persistia se atendo às amarras. Não bastava ser livre pensador, precisava se comportar de forma a pertencer, para assim além do deserto seu destino alcançar... Até que pudesse autossuficiente e liberto se apresentar, ou bem representar.
Por algum motivo levava consigo uma pedra sabão, um maço e um cinzel. Nem de longe seria escultor, pois a pedra já estava esculpida, faltando apenas lapidar. Mas viveria então uma estética reprodutível, ou algo que dissesse exatamente o que nunca deveria se dizer?
Respeitou a fila, alimentou a cáfila, cruzou o deserto (se é que cruzar o deserto é encontrar água e terra fértil para semear).
Nasceu, cresceu, morreu diversas vezes, uma coisa ou outra entendeu e diversas vezes outras importantes as esqueceu.
Mas um sentimento terrível de repente se apresentava na prontidão de um soldado real que o sustentava: o bem nada seria se um contraponto não o qualificasse. Logo, a imperfeição seria bela, a lagarta também, e um gato sorrindo mais ainda.
Percebeu que não tinha uma coisa sem a outra, e mais ainda: que a pedra que tanto lapidava era igualmente bela e resoluta, embora eminentemente bruta. Ela continha o Todo; o Todo era a forma.
Viveu então um longo tempo de plena lucidez. Tudo era ponderável, mensurável, e da mesma forma que havia pontos sólidos de referência pelo sim e pelo não, havia o incognoscível, o inominado.
E depois de tanto viver convicto dos desígnios do tempo, sustentando vaidades disfarçadas de verdades, as marcas do tempo então agiram... O cabelo caía e as rugas vertiam abaixo enquanto os julgamentos do passado também declinavam pelos tempos modernos. Então assim as coisas não passavam, declinavam...
Dessa forma, aquele velho inconvicto, aparelhado pelos apelos da verdade inconvicta, envelheceu. Assumiu que a unica verdade comum a todos era aquela que habitava nossas células e provia nosso coração. Percebeu não só que tudo passa, mas que a maior força que nos une é gravidade. Num ciclo meio tempo desce, e meio tempo sobe.
Procurou culpa para expiar. Não encontrou. Foi então até lá no fundo do baú, porque é o que acontece quando alguém que esqueceu precisa relembrar.
Interessante é que o passado se guarda abaixo ou no alto, ou no porão ou no sótão.
Lembrou a juventude, o deserto, a maturidade e seus novos critérios. Lembrou dos mistérios insolúveis, e lembrou da insubstancialidade que os desqualificou.
Só não lembrou o passado. Confiou que lembraria o necessário, esqueceria do desnecessário e conservaria o que mais lhe valeria.
Pegou então o maço e o cinzel, e com exímia proeza e verdadeira sensatez finalizou sua escultura delicada em pedra sabão. Era si próprio então desvelado pela mão.
O sim e o não, o certo e o errado, a emoção e a razão, o justo e o injusto: era tudo pela mesma mão no malhete.
E finalmente, com um só golpe resoluto, astuto e objetivo, destruiu sua lapidação trabalhada e tantas vezes interrompida por vários anos além dos anos.
Destruiu a lapidação da pedra bruta, inclusive o tempo restrito a s mesmo.
Não deixou fotografias, nem meias verdades. Deixou vasto patrimônio sem valor algum. Não quis mostrar que nasceu, quis ser numa lápide esquecido. Não cresceu, porque maliciosamente não difundiu sua escultura impura.
Suas ultimas palavras escutadas por ninguém foram: aprenda amar uma pessoa só, pelo mesmo motivo que tantos se odeiam.
Você nasce só e morre só, o resto é só patrimônio.