quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Jesus, a atéia e a cigana


 Talvez tenha sido por ter reparado na ausência de alianças nas suas mãos, ou pelas várias vezes que vira Helena mecanicamente sentar-se e almoçar sozinha no restaurante/café logo à frente. O fato foi que num certo dia, quando Helena passava mais uma vez por aquela esquina, a Cigana que às vezes aparecia por ali disse a ela que sempre seria só enquanto acreditasse que o amor é ridículo.

Helena, quando escutou isso, sentiu um intenso arrepio subindo pela cervical, acompanhado de um constrangimento equivalente àquele de quando uma pomba defeca na sua roupa branca bem no meio da rua.

Voltou-se à cigana e perguntou:

_ O que disse?

_ Você ouviu muito bem... Se quiser posso ler suas mãos...

Mesmo sendo uma cética consciente de que alguma manifestação não verbal pudesse ter dado pistas sobre esse seu lado pessoal, ou um simples chute intuitivo daquela senhora exótica de dentes dourados, ainda assim submeteu-se à prática quiroscópica da Cigana.

_ Vejo que usa um crucifixo de ouro no pescoço... O que me faz entender que seja cristã...

“Mas isso qualquer um pode concluir...” pensou Helena fingindo simpatia, e para não ficar ruim, complementou dizendo que foi um presente de sua mãe.

_ Mas aqui está claro que não acredita nesse Jesus cuja insígnia carrega próxima ao seu coração.

_ Realmente não acredito. Nem em religião, nem em Jesus, e nem muito menos em qualquer coisa que a senhora pode vir a me dizer.

_ Então por que aceitou que analisasse sua mão?

_ Para provar que tudo isso é ridículo. Você sabia que nem mesmo historiadores ou arqueólogos encontraram provas conclusivas sobre a existência de Jesus?

_ Não sei o que essas pessoas fazem... me perdoe a ignorância. Mas mesmo assim, se tivessem as ditas provas concretas da existência corpórea de Jesus, isso serviria para comprovar seus ensinamentos e milagres ou serviria para classificá-lo como sendo uma pessoa comum, igual a nós, e portanto sendo indeferida toda sua Santidade?

_ Não sei. Sei que para mim isso não faz diferença nenhuma.

_ Não faz sentido que aprender a pensar sobre isso pode conectá-la ao verdadeiro sentido do amor?

_ O que não faz sentido é uma Cigana defendendo o cristianismo como sendo detentor da verdade sobre o amor.

_ Minha jovem, saiba que nenhuma religião ou ciência é superior à verdade.

_ Certo, então faça uma previsão sobre meu futuro. Não é pra isso que estamos aqui?

_ Mas foi a primeira coisa que fiz... “...que sempre seria só enquanto acreditasse que o amor é ridículo.”

_ Então não tenho mais motivo para prosseguir a conversa. Quanto custa a consulta?

_ Por que não me dá essa sua joia no pescoço? Parece não ter nenhum valor para você.

_ Acha que pagarei o peso em ouro por essas suas verdades? Saiba que as pessoas pagam para escutar o que querem ouvir. Pagam pelo que as dá prazer, pelo que as enche de esperança. Por isso a televisão e as religiões fazem sucesso. No mundo em que eu vivo não existem milagres, e ser só é uma das maneiras práticas de melhor aproveitar o pouco tempo de vida própria que possuo. Fique com o troco!

E assim terminou a indigesta quiromancia daquela tarde de inverno. Helena seguiu rumo ao hospital onde trabalha. Ela faz diagnósticos de câncer de cabeça e pescoço, delimitando a amplitude da amputação ou a expectativa de vida dos donos das imagens que analisa. Interessante é que ela sempre faz o sinal da cruz quando termina um laudo.

Fabrício M. Oliveira